Este folhetim trata de fantasmas. E quem melhor soube representá-los como sombras vivas foi Lourdes Castro e os seus amigos. A revista KWY foi um veículo precioso! Publicou-se em doze números de fabricação artesanal de 1958 a 1964. A denominação tem a ver com as três letras que então estavam ausentes do alfabeto português. Só por ironia disse-se que significava Ká Wamos Yndo… O grupo foi responsável “pela abertura da arte portuguesa no contexto internacional e pela franca adesão às novas linguagens figurativas que, sob a égide da reconstrução económica do pós-guerra, deram impulso a um dos períodos mais estimulantes da cultura europeia do século XX”. Em lugar de agrupamentos por tendências, há grupos de intervenção. Trata-se de um realismo cosmopolita. Com o grupo “KWY” (Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro, José Escada, João Vieira, Gonçalo Duarte, Jan Voss e Christo), abrem-se horizontes além-fronteiras, ultrapassando a dimensão paroquial, fora da censura no caminho criador pelo repensar das raízes.
Lourdes Castro compreendeu o novo tempo e as novas tendências de um modo exemplar. “A surpresa do desenho, a simplicidade da forma, o contorno da sombra fascinou-me tanto que ainda hoje para mim é nova” (como testemunhou a Joana Galhardo Frazão). Ao seguirmos o seu percurso é impressionante o modo como soube trilhar caminhos absolutamente inesperados e inovadores. Em “O Grande Herbário das Sombras” reencontrou a Natureza e a vegetação da Ilha da Madeira, domínio da laurissilva, sua terra natal, com uma centena de espécies botânicas, que permitem ligar o labor da artista à criação essencial e transcendente. Como recordou José Carlos Seabra Pereira, a obra envolve “a imanência do mundo criado e a Transcendência que lhe dá sentido último”. É o dom da vida que está em causa, como fica demonstrado no filme “Pelas Sombras” de Catarina Mourão (2010), no qual se apresenta o encantamento “com a magia no quotidiano das coisas”. Por isso, a artista afirma: “a minha pintura é esta: o viver, o estar cá”. E assim a sua arte foi-se tornando o espaço à sua volta. “Não a posso transportar. Ela nem quereria mudar de sítio”. José Tolentino Mendonça afirmou que, para ela, “a arte nunca foi simplesmente um fazer. A arte era um intransigente pensamento sobre o estar”. Por isso, não deixa apenas obras que podemos ver nos museus, deixa uma visão. E tal constitui um facto político raro. Lembrando o “Teatro de Sombras”, verdadeiro património imaterial posto em prática primeiro com René Bertholo e depois com Manuel Zimbro, trata-se de arte em movimento. Os primeiros passos foram no Centro Nacional de Cultura, em 1954, com José Escada. Não por acaso, o Centro era uma casa onde o teatro tinha especial importância, sob a influência de Fernando Amado e de Almada Negreiros. E Lourdes Castro, no tempo da fugaz passagem em Belas-Artes, começou a fazer teatro com Fernando Amado no Centro, e foi no espaço do teatro que a jovem começou por apresentar os primeiros passos nas artes plásticas. E vem à memória a peça “Antes de Começar” de Almada Negreiros, encenada por Amado, nos princípios que conduziriam à criação da “Casa da Comédia” e à amizade que se prolongará no tempo, pela vida fora, com o pintor Manuel Amado, companheiro, com sua mulher Teresa, em férias e viagens na Madeira e Porto Santo. E está aqui a preciosa chave, capaz de ligar a descoberta das sombras, a representação teatral e a paixão pela vida. E há o encontro simbólico entre a memória do primeiro modernismo de Almada Negreiros e a lembrança de Fernando Pessoa, muito presentes nesse tempo e no grupo, quando o poeta do “Livro do Desassossego” começava a ser descoberto, ao lado de um outro modernismo, totalmente novo, da geração de “KWY”. E foi essa pulsão vital que levou Lourdes Castro a realizar esses fantásticos livros de artista, que explicou simplesmente – “porque havia tesouras, havia papel, havia tempo, gostava de livros…”. E, ao apresentá-los, Paulo Pires do Vale compreendeu bem como a artista continuou a criar, mesmo quando se retirou da intervenção ativa. “Na verdade, não deixou de criar”, continuou, sim, a “transformar a própria vida”, a “dar-lhe maior atenção” (Público, 9.1.22). E na exposição “Tudo o que Eu Quero”, Helena de Freitas e Bruno Marchand, na Gulbenkian, ficaram em destaque as sombras na sua múltipla dimensão, absolutamente singular e inovadora – silhuetas bordadas em lençóis brancos, retratos de amigos em plexiglas, flores e folhagens. “As suas sombras tornam-se progressivamente mais leves. A presença aprofunda-se na ausência e cumpre-se no desaparecimento” (Anne Bonin).
José Tolentino Mendonça refere três momentos no caminho de Lourdes Castro. “A primeira etapa é aquela que vai até ao ‘Teatro de Sombras’ e constitui talvez a parte mais reconhecível da sua produção artística”. A segunda etapa foi a do movimento das sombras, como se uma parede deixasse de ser um obstáculo, descobrindo-se no branco do muro intransponível uma passagem na transparência. E lembro o enigma dos jardins japoneses, como em Ryoan-ji, em Quioto, quintessência de um templo zen, representação do mundo contada por João Bénard da Costa no filme “A Décima Quinta Pedra” de Rita Azevedo Gomes. Por fim, a terceira etapa foi a dos jardins madeirenses – a Praia Formosa, a Quinta do Monte, o lugar de exílio de Carlos de Habsburgo, e o Jardim do Caniço… De facto, o jardim tornou-se a própria obra (cf. Expresso, 14.1.22). “O meu jardim é a minha tela”. A Natureza é que tudo faz. Lourdes Castro preparava-se, afinal, para a última viagem, em direção ao Jardim das Nuvens. A obra de arte deixou de se limitar a um espaço contido, às fronteiras de uma tela ou de um lençol, abriam-se os horizontes, e não havia fronteiras intransponíveis nesse teatro de nuvens.