Abecedário da Cultura da Língua Portuguesa

J. Joaninha dos olhos verdes

As “Viagens na Minha Terra” de Almeida Garrett (1ª edição, 1846) são constituídas por quarenta e nove capítulos de um folhetim romântico, cuja originalidade está na linguagem comum que usa e na ligação entre o relato de uma viagem e a narrativa de uma história trágica sobre a guerra civil que dividiu o país de 1832 a 1834, e de que o autor foi protagonista. A viagem existiu de facto, de 17 a 22 de julho de 1843, em que Almeida Garrett foi ao encontro do seu amigo Passos Manuel, então num exílio no interior da pátria, uma vez que tinha sido arredado da ribalta política pelo golpe de Estado em que António Bernardo Costa Cabral restaurou a Carta Constitucional (1842). A narrativa é imaginada como procura de uma lição moral, depois do tempo heroico de uma guerra ter cedido lugar ao conformismo e à indiferença – simbolizados na figura de Carlos. Se é certo que o autor, inspirado em Swift, Stern ou De Maistre, nos diz que neste género importa mais o estilo que a doutrina, a verdade é que o autor cuida especialmente da renovação do estilo, e da sua originalidade, sem esquecer uma pitada de doutrina, já que não esconde a acerba crítica em relação ao cinismo e ao agiotismo a que se chegara. O escritor quer acreditar na força da liberdade e dos seus ideais, contudo olha em volta e muito pouco vê nesse sentido. Por isso, sendo um partidário da “monarquia nova” (como disse no célebre discurso do Porto Pireu, perante José Estevão), não pôde deixar de admirar, apesar de não gostar de frades, a convicção de Frei Dinis, o inesperado pai de Carlos, velho partidário da “monarquia velha”. A descrição da viagem entremeia a exaltação da natureza (“bela e vasta planície”, “delicioso aroma selvagem”) com as invocações pessoais, em aparente desordem. Até que chegamos ao vale de Santarém. Faias, freixos, álamos, madressilvas, mosquetas, congossas, fetos e malvas-rosas compõem uma verdadeira sinfonia silvestre. E chegamos a uma janela, que faz adivinhar um feitiço. E se falamos de fantasmas, eis uma das referências indiscutíveis. É a janela da “menina dos rouxinóis”, da “Joaninha dos olhos verdes”.

E abre-se o romance: “Era no ano de 1832, uma tarde de Verão, como hoje calmosa, seca, mas céu puro e desabafado…”. Garrett mistura propositadamente as suas reflexões ao longo da viagem e o contar da narrativa, que ali teve lugar, no auge da guerra entre o Portugal novo e o Portugal antigo (com a presença de Joaninha, Carlos, Georgina, a Avó e Frei Dinis). E entre os episódios do romance, a viagem continua: “Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M.P.” (Manuel Passos). E então: “comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a comer. Vieram visitas, falou-se de política, falou-se de literatura, falou-se de Santarém sobretudo, das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça presente. Enfim, fomo-nos deitar. Nunca dormi tão regalado sono em minha vida…”. Ontem, como hoje, a magnífica hospitalidade… E assim vida e literatura juntam-se naturalmente.

Mas retornemos à menina dos rouxinóis. «Joaninha não era bela, talvez nem galante sequer no sentido popular e expressivo que a palavra tem em português, mas era o tipo da gentileza, o ideal da espiritualidade. Naquele rosto, naquele corpo de dezasseis anos, havia, por dom natural e por uma admirável simetria de proporções, toda a elegância nobre, todo o desembaraço modesto, toda a flexibilidade graciosa que a arte, o uso e a conversação da corte e da mais escolhida companhia vêm a dar a algumas raras e privilegiadas criaturas no mundo». O que a singulariza? «Os olhos de Joaninha eram verdes… não daquele verde descorado e traidor da raça felina, não daquele verde mau e destingido que não é senão azul imperfeito, não; eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate». (…) «O efeito desta rara feição, naquela fisionomia à primeira vista tão discordante, era em verdade pasmosa. Primeiro fascinava, alucinava, depois fazia uma sensação inexplicável e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo tempo: por fim pouco a pouco, estabelecia-se a corrente magnética tão poderosa, tão carregada, tão incapaz de solução de continuidade, que toda a lembrança de outra coisa desaparecia, e toda a inteligência e toda a vontade eram absorvidas.Resta só acrescentar — e fica o retrato completo, um simples vestido azul-escuro, cinto e avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas em coturno». Camões também um dia disse: «Eles verdes são / e têm por usança / na cor, esperança / e nas obras não». “Minina dos olhos verdes, porque me não vedes”? E que maior saudade de um espírito senão a deste amor de Joaninha?

(Ilustração: José Malhoa)

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