A iniciar este folhetim pegamos na palavra antológica de João Bénard da Costa, há dois dias no nosso blogue. Falava ele do “Fantasma Apaixonado” e de Mrs. Muir no filme celebrado de J. Mankiewicz de 1947. De facto, vamos entrar num domínio de histórias de fantasmas. Este abecedário seguirá a ordem das suas letras, e procurará encontrar as referências da nossa cultura, começada neste ocidente peninsular e depois espalhada pelo mundo. Para nos compreendermos, que outro método poderíamos seguir senão o de ir ao encontro dos velhos espíritos? E Unamuno muito se admirou por haver tantas Alminhas nas encruzilhadas das nossas estradas e caminhos… Somos Finisterra, e é o Atlântico, o Mar Oceano, que primeiro referenciamos. Mar, que também foi batizado no feminino, La Mar, como “Flor de la Mar” de Albuquerque. O Atlântico não é pessoa, mas é personagem; tão importante, que o nosso primeiro rei a considerou essencial. Em lugar de alimentar sonhos continentais, Afonso Henriques preferiu partir em direção ao Sul. O conflito de S. Mamede, com sua Mãe, foi bem diferente do que por aí se diz e teve a ver com uma atitude de elementar realismo. Mais importante do que se meter nas ambições leonesas, asturianas e galegas, haveria que abrir caminhos em terras moçárabes, procurando pôr ordem nos reinos taifas de fronteiras incertas, fazendo de Coimbra eixo de gravidade e da linha do Tejo um objetivo seguro. E eis que os três AA se encontram: o próprio Mar Oceano que limita e abre horizontes até ao Promontório Sacro e depois às Ilhas Encantadas; o primeiro Rei, Afonso, que transformou a vontade em, Povo, como construção, aberta e livre, e Frei António, o mais popular de todos os santos. Ainda que Pádua seja tantas vezes referida para identificar o mais célebre dos santos portugueses, a verdade é que é Portugal que Frei António referencia. Natural de Lisboa foi exemplo na Escola de Coimbra de Santa Cruz. Motivado pelos mártires de Marrocos tornar-se-á o primeiro dos teólogos franciscanos, modelo único de taumaturgo com excecional carisma popular – desde as causas perdidas a ser casamenteiro, de cidadão a portador de paz. O humanismo universalista simboliza-o e projeta a cultura como projeto e expressão múltipla da dignidade humana. E, simbolizando ainda o Atlântico, como fronteira natural da terra portuguesa, reza a antiga lenda que ao romper da aurora de 14 de setembro de 1182, D. Fuas Roupinho, alcaide do Castelo de Porto de Mós e Almirante da Esquadra do Tejo, nomeado por D. Afonso, caçava junto ao mar, envolto por um denso nevoeiro perto de suas terras, quando avistou um veado que começou a perseguir. O veado, que era o demo, dirigiu-se ao cimo de uma falésia e D. Fuas, no meio do nevoeiro, isolou-se dos seus companheiros, e depressa chegou ao topo do penhasco, à beira do precipício. Estava mesmo ao lado da gruta onde se venerava Santa Maria e o Menino Deus. Rogou então, em alta voz: Senhora, Valei-me! E de imediato o cavalo estacou, fincando as patas no penedo suspenso sobre o vazio, hoje chamado Bico do Milagre, salvando-se o cavaleiro e a sua montada da certa morte…
(Ilustração de Sarah Afonso e Almada Negreiros).