A VIDA DOS LIVROS
de 5 a 11 de Setembro de 2011
Publicamos hoje o texto saído há duas semanas no JL, dando conta da homenagem prestada em S. Pedro de Rio Seco pelos seus amigos e conterrâneos a Eduardo Lourenço, permitindo-nos remeter para o filme que Anabela Saint-Maurice dedicou ao ensaísta na RTP-2 com a participação, entre outros de Pedro Mexia, de Gonçalo M. Tavares e de Hélia Correia.
NAQUELE SÁBADO DE AGOSTO
Em S. Pedro de Rio Seco, naquele sábado de Agosto, depois de uma chuva leve, pudemos celebrar Eduardo Lourenço (EL), com o sol a espreitar entre as nuvens, no meio do seu povo, dos seus familiares e amigos. E alguém dizia-me que todos gostaram muito de ouvir o pensador na linguagem acessível das pessoas comuns. Em palavras chãs, Eduardo lembrou os pais, os irmãos, os amigos, os companheiros, nos dez anos em que viveu próximo do coração da Beira-Serra. Esse foi o tempo de S. Pedro, como está transcrito no memorial que Leonel Moura criou para homenagear o ensaísta de «O Labirinto da Saudade»: “Eu tenho um espaço particular que é o da minha aldeia. Da minha aldeia e desses dez anos que aí vivi e foram diferentes de tudo o resto que me aconteceu. Estava no mundo e o mundo estava em mim. Depois nunca mais soube, realmente, onde estou e nunca o saberei”. Aí estão as suas raízes, e sentimos bem que se tratava de um regresso gostoso e emocionado.
À beira da casa onde nasceu, adivinha as palavras de seu irmão Adriano, discreto e laborioso organizador (com Luís Queirós, M. Alcino Fernandes, A.J. Dias de Almeida e Alexandra Isidro) daquele momento de gratidão. Quantas memórias dessa casa e das pessoas que a povoaram. É um mundo o que ali se encontra. No documentário de Anabela Saint-Maurice, «Regresso sem Fim» (da RTP-2), Pedro Mexia procura indagar do ensaísta o que encontra nesse lugar, e o fundamental fica no não dito e na efusão dos encontros do largo da aldeia. Em cada uma das saudações, há milhentas lembranças, de encontros entre quem o tempo afastou, e agora aproxima… A lembrança da Mãe é muito forte, mesmo e sobretudo nas entrelinhas. Percebemos a força de uma guardiã, lutando contra ventos e marés, com a tarefa de permanecer na distância. A recordação do Pai vai aparecendo, com o amor à terra, com a sabedoria do conhecimento da natureza. E percebemos a importância de um significativo legado – uma arca misteriosa e poética, de livros e referências paternas. Aí está Guerra Junqueiro, o poeta querido e contraditório – rebelde, mas ciente das raízes populares. E é o poeta de Freixo de Espada à Cinta o chamado por EL nesse dia de recordações. «Minha mãe, minha mãe, ai que saudade imensa / do tempo em que ajoelhava, orando ao pé de ti. / Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares / cruzavam-se voando em torno dos seu lares, / suspensos do beiral da casa onde nasci». Manuel António Pina lembrá-lo-ia no rescaldo da cerimónia. As andorinhas ali estavam, vindas da infância, ligando-nos a esse tempo antigo, como símbolos de tudo – da mãe, do pai e da sua arca, da aldeia, do tempo de S. Pedro, do inexorável ciclo das estações. E, além de Junqueiro, a arca continha a literatura como projeção da vida, como tesouro de imaginação. Ali estava o começo e o prenúncio do amor pela ficção, como narrativa do mundo. Júlio Dinis e «A Morgadinha dos Canaviais» representavam, afinal, a iniciação ao tempo, nesse caminho fantasmático que une a existência e a criação. A partir daí a literatura ocupa o espaço todo, do puro talento à interpretação de todos os grandes enigmas.
REGRESSO SEM FIM
No filme «Regresso sem Fim», a visita a casa de Miguel de Unamuno em Salamanca é muito mais que uma homenagem ao escritor de «O Sentimento Trágico da Vida», é o encontro com alguém muito próximo de EL, no método e na inquietação e no pensamento, que procurou compreender a complexa relação ibérica. Pilar del Rio não deixa de se enternecer por essa aproximação natural das culturas peninsulares. E vem à memória a ilustração de João Abel Manta desse misterioso diálogo confidencial entre Miguel de Cervantes, Miguel de Unamuno e Miguel Torga. Lourenço e Saramago estão por perto. Com entusiasmo juvenil, o nosso Eduardo descobre num antigo mapa, bem junto da fronteira de Alcanizes a toponímia de S. Pedro, e recorda como foi difícil esse acerto final de fronteiras em Riba Coa. Unamuno enche Salamanca com a sua força espiritual. Vem à lembrança Kierkegaard e a vacina filosófica que o ensaísta tomou para se proteger das ilusões de Hegel. D. Miguel tinha em comum com EL a admiração por Antero (o mestre supremo). E relemos o salmantino: «Quental foi uma das almas mais atormentadas pela sede de infinito, pela fome de eternidade. Há sonetos seus que viverão quanto viva a memória das gentes, porque serão traduzidos, mais tarde ou mais cedo, em todas as línguas de homens atormentados pelo olhar da esfinge». Recordamos a fotografia de Unamuno, com a inconfundível barba branca, no seu gabinete de trabalho, rodeado de livros, publicações e apontamentos – ele que tão bem conheceu Portugal e os portugueses. Lá está a fileira de retratos dos seis portugueses que mais admirava: Herculano, Oliveira Martins, João de Deus, Antero, Camilo e Soares dos Reis. Interrogamo-nos sobre o mistério do país de suicidas. «Para Portugal o sol não nasce nunca: morre sempre no mar, que foi teatro das suas façanhas e cunha e sepulcro das suas glórias» – disse o mestre de Salamanca. «A literatura portuguesa tem duas notas dominantes, a amorosa e a elegíaca. Portugal parece a pátria dos amores tristes e dos grandes naufrágios». EL não esquece, como Unamuno, a melancolia e o sentimentalismo dos portugueses, mas procura ir além, interrogando os mitos como sinais emancipadores, sob o aguilhão da crítica. E, no fundo, a sede de infinito que ambos encontram em Antero torna-se sentimento trágico num e utopia crítica e emancipadora no outro. «A cada um sua utopia (diz EL). Utopia por utopia, como europeu desiludido mas não suicida, prefiro ainda a de uma Europa apostada em existir segundo o voto dos que há meio século a sonhavam, não como uma continuidade óbvia de um passado “europeu” sem identidade, mas como uma aposta numa Europa, empírica e voluntariosamente construída pelas “várias europas” que são cada uma das suas nações» (Visão, 4.8.11). Não é uma pseudo-América de segunda ordem que está em causa, mas uma saída que exige compromisso e ação. Lourenço pensa Portugal como vontade e como comunidade plural de destinos e valores, pondo em diálogo os mitos e a razão e procurando afastar a maldição do atraso. O enigma português não pode ser respondido por qualquer simplificação – ora idealista, ora sentimentalista, ora materialista. É a «maravilhosa imperfeição» que o pensador cultiva, ligando-a à complexidade e à diversidade. Com sereno orgulho, EL é consciência crítica da cultura portuguesa, na linha de Herculano e de Antero – e uma das consciências culturais, morais e cívicas da Europa contemporânea, ao lado de Edgar Morin, de Claudio Magris ou de Jürgen Habermas. A utopia torna-se um horizonte de crítica e de exigência, e nunca de fuga à realidade. E Portugal, a Europa e o Mundo ligam-se, em pensamento, placidamente no apelo universalista da dignidade humana.
Guilherme d’Oliveira Martins