A VIDA DOS LIVROS
de 29 de Agosto a 4 de Setembro de 2011
Luís Filipe Thomaz acompanhar-nos-á com o seu conhecimento e a sua sabedoria. Levaremos para nos guiar os seus estudos, como «A escravatura em Malaca no século XVI» e «As Cartas malaias de Abu Hayat, Sultão de Ternate, a El-Rei de Portugal – e os primórdios da presença portuguesa em Maluco». Partimos com o entusiasmo de sempre. Desta vez, vamos completar as peregrinações no rasto de Fernão Mendes Pinto e de Francisco Xavier. Quinhentos anos depois da conquista de Malaca (1511), regressamos imbuídos do espírito universalista e moderno do diálogo e do respeito, e, mais do que lembrar o tempo antigo, partimos dessa história rica para o futuro, fieis a Padre António Vieira e ao seu Império do Futuro e às Saudades dele.
Malaca. Porta de «A Famosa». Património Mundial da UNESCO.
VINTE SEIS ANOS DE VIAGENS
Quando Helena Vaz da Silva lançou, em 1985, este ambicioso ciclo dos «Portugueses ao Encontro da sua História», do Centro Nacional de Cultura, talvez não supusesse que, todos estes anos passados, com várias voltas ao mundo realizadas, ainda continuamos a procurar encontros inesperados nos lugares mais recônditos da terra. Mais do que olhar para a História, como referência passada de encontros e desencontros, do que se trata é de realizar embaixadas de escritores, artistas, cidadãos, que têm sobretudo o interesse de favorecer o melhor conhecimento mútuo. Há alguns meses, regressámos do Japão e sentimos com muita emoção que fomos recebidos de braços abertos, genuinamente. A virtualidade maior desta iniciativa é o seu carácter de pura «peregrinação», em que vamos de olhos e coração abertos, sem cuidar do que pode resistir, mas apenas pensando no facto único, que é o de haver portugueses em toda a parte, e se não estão fisicamente existe a sua memória. Com que espanto vimos no Sultanato de Oman as cúpulas das mesquitas que inspiram as guaritas da nossa Torre de Belém ou a decoração da Bacalhoa – como Leonor Xavier lembra na «Viagem das Arábias». Com orgulho, fomos ouvir, em imaginação, o Padre Vieira em Salvador ou no Maranhão, a fazer da língua uma eficaz lança contra a injustiça. Com que satisfação partimos da Foz do Iguaçu no caminho dos Bandeirantes, percebendo que a História se foi fazendo numa riquíssima dialéctica envolvendo índios guaranis, jesuítas e conquistadores. Se falo de continentes longínquos devo ainda referir a Europa Oriental, mais próxima, onde, para surpresa de muitos, fomos encontrar um braço direito português de Pedro o Grande, mas também deparámo-nos com a recordação de Damião de Góis em Cracóvia ou com os ecos extraordinários da diva Luísa Todi em S. Petersburgo…
SEMPRE COM FERNÃO MENDES
Fernão Mendes Pinto tem-nos guiado os passos. Temos viajado, milhares de milhas ou quilómetros, com a «Peregrinação» debaixo dos olhos. E posso dizer que, vendo os cenários onde esteve, ainda admiramos mais o extraordinário génio desse escritor, mais do que cronista, anunciador da nova literatura. Aliás, só poderemos perceber Camões, João de Barros, Diogo do Couto ou D. João de Castro, lendo o outro lado da vida e as descrições pícaras e dramáticas de Fernão Mendes. É o anti-herói, que usa a regra da sobrevivência, mais do que a da honra – e nesse ponto descreve a presença portuguesa na sua diversidade, em que a virtude e o pecado se associam. E assim Fernão Mendes construiu, no dizer de António José Saraiva, «um Oriente espantosamente humano, que tem o seu estilo próprio. Um Oriente que não é feito só de cidades, templos e esculturas, mas também do estilo falado, de etiquetas humanas, de sentimento típicos». Encontrámo-lo entre Goa e o Mar Vermelho, em guerra de corso. Vimo-lo no Japão e sentimos a sua relação com o bom Padre Francisco Xavier. Relemos as aventuras em Sião, na Cochinchina, Anão e Tonquim, no rasto do Corsário Coja Acém, ao lado de António Faria. Mas agora preparamo-nos para caminhar com ele em direcção a Malaca, onde esteve ao serviço de um fidalgo, percorrendo as costas de Samatra e da península malaia. A aventura de antanho é o pretexto, mas o que queremos é reencontrar as reminiscências actuais da presença dos portugueses, das nossas cultura e língua nestas paragens.
UM PÉRIPLO PORTUGUÊS
Este périplo, que invocará os quinhentos anos da presença portuguesa em Malaca (1511) e continuará a recordar o nascimento de Fernão Mendes, permitindo irmos ao «coração de Malaca», mas também até à Indonésia, a Timor e às Flores, nesta extraordinária região do «papiar cristão». E, como gostava de lembrar o nosso querido António Alçada Baptista, aqui as orações dizem-se em português e a palavra saudade tem o mesmo sentido que nós lhe damos. Neste espírito de «Peregrinação» voltamos, mais uma vez, a deparar-nos com o génio de Afonso de Albuquerque, artífice da miscigenação, da mistura e do encontro. E se Fernão Mendes foi tudo – criado de fidalgo, soldado, escravo, agente de negócios, pirata dos mares da China, mercador, médico ocasional do rei do Bongo, vagabundo e embaixador -, a verdade é que isso significa que ele simboliza o português do mundo – Todo o mundo e Ninguém, como no «Auto da Lusitânia» de Mestre Gil.
AO ENCONTRO DO TEMPO
Depois do Japão, regressa a Malaca ao encontro do capitão que o protege, que o acolhe e o envia em missão. Mendes Pinto volta, porém, a meter-se em apuros no Golfo de Bengala, e vai até à Índia. Depois, volta a Malaca e daí parte para Java, onde se torna soldado mercenário. Malaca torna-se placa giratória dos movimentos do autor da «Peregrinação». António José Saraiva afirma ainda certeiramente que «não há na literatura portuguesa um tesouro de fantasia comparável a este. Uma selva espessa de aventuras, de acontecimentos, de descrições, de surpresas, de enormidades, um mar em que a vaga sucede à vaga – são as imagens que ocorrem para caracterizar a abundância e a força deste livro». É o anti-herói que descreve a vida sem os preconceitos da honra, mas com as fraquezas próprias de quem desfalece por se deparar com os perigos e ameaças que uma aventura verdadeira sempre suscita. Mendes Pinto oscila, assim, entre o sublime e o corriqueiro, entre o cinismo e a determinação – associando na mesma personagem o herói e o homem comum, o pobre de mim. Pois, sob estas invocações, ouvimos de Malaca a pergunta, que vem da noite dos tempos: «Ki nobas?», a interrogação por novidades ou notícias… Ao encontro da história e da cultura, seguiremos, de 27 de Agosto a 10 de Setembro, com o Prof. Luís Filipe Thomaz, cicerone por excelência desta «peregrinação» única pelo caminho do papiar, a língua franca do século XVI: Kuala Lumpur, Malaca, Bali, Flores (ao encontro da família real de Sika, os Ximenez da Silva), Timor Leste, Amboíno, Ternate, Tidore, Jacarta, Singapura. Que é a interrogação do passado senão a procura dos trilhos contemporâneos que significam a continuidade do tempo?
OUVIR CAMÕES
E ouvimos Camões: «Olha cá pelos mares do Oriente / As infinitas ilhas espalhadas / Vê Tidore e Tarnate, co fervente / Cume, que lança as flamas ondeadas. / As arvores verás do cravo ardente / Co sangue português inda compradas. / Aqui há as áureas aves, que não decem / Nunca à terra e só mortas aparecem». (Os Lusíadas, X, 132).
Guilherme d’Oliveira Martins