A VIDA DOS LIVROS
de 4 a 10 de Julho de 2011
O brasileiro Luiz Ruffato reuniu uma curiosíssima antologia de Fernando Pessoa intitulada «Quando fui Outro» (Alfaguara, 2010). Sobre essa reunião Inês Pedrosa escreveu: «Ruffato não se deixou intimidar por aparências e enredos: foi directamente à essência da voz e da dor de Pessoa». Tem toda a razão. Mas, se hoje recordamos esta curiosíssima antologia, temos de lembrar ainda «Pessoa Revisitado» de Eduardo Lourenço (Gradiva, 2000), uma obra muitas vezes incompreendida, mas sem dúvidas um guia fundamental para acompanhar o percurso inesgotável de Pessoa.
PESSOA, SÍMBOLO DA CULTURA PORTUGUESA
Fernando Pessoa tornou-se um autêntico símbolo da cultura portuguesa. E, como se sabe, ao contrário do «diábolo», que divide, na etimologia grega, o «símbolo» é o que une. Em virtude da riqueza e mistério dos heterónimos é sempre possível descobrir um lado desconhecido do célebre poeta, que se espraiou com toda a pujança no «Livro do Desassossego» (que há bem pouco tempo João Botelho soube tão bem traduzir em imagens). Mas o fundamental é dizer que hoje em cada fragmento da multifacetada obra pessoana encontramos um pouco de nós mesmos. E é indubitável que Lisboa se tornou nos últimos anos uma cidade marcada pela indelével presença de Fernando Pessoa, graças à inesperada riqueza da famosa arca, donde saíram verdadeiras preciosidades de talento e de sensibilidade, mas sobretudo pelo mimetismo revelado pelo poeta em relação à nossa personalidade. E o certo é que «O Ano da Morte de Ricardo Reis» de José Saramago foi um modo de somar notoriedade à excelência mítica de Pessoa. E assim apresentou um Pessoa «único, uno, íntegro», o que é audacioso, mas também enriqueceu a nossa leitura do poeta. E, de um lado e do outro do Atlântico, entre alegrias e melancolias, sentimos como Fernando Pessoa se tornou representação de uma cultura portuguesa moderna – sem esquecer as raízes antigas. «Ouso dizer (afirma Ruffato) que “Quando fui Outro” tem essa pretensão: espiar o homem em sua vida verdadeira, “que é a que sonhamos na infância, / E que continuamos sonhando adultos, num substrato de névoa”». E deste modo o «desassossego» (“romance sem acção”) torna-se «simbiose entre vida e arte, resumida numa frase que é um completo programa estético: “Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real”». E é esta diversidade, este entrecruzar de caminhos e influências, que nos conduz ao «melting-pot» que culturalmente somos no mundo das línguas e culturas da língua portuguesa. Por isso, Fernando Pessoa atrai o entusiasmo de tantos (dentro e fora) como símbolo deste lugar – «Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -, / Transeunte inútil de ti e de mim, / Estrangeiro aqui como em toda a parte, / Casual na vida como na alma, / Fantasma a errar em salas de recordações, / Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem / No castelo maldito de ter que viver…».
CONTRIBUTO PARA A NOSSA IDENTIDADE
Muito se tem dito sobre a nossa identidade e o nosso carácter de portugueses, e a verdade é que é difícil resumir o que somos (melancólicos, saudosistas, pouco previdentes, hospitaleiros, afáveis…) – cabendo a Pessoa ser intérprete da heterogeneidade ou da «maravilhosa imperfeição» de que nos fala Eduardo Lourenço, no regresso de um povo ao cais de partida, depois da viagem à volta do mundo. E essa interpretação vai para além das aparências, chegando ao intrincado dos mitos. «Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém na humanidade». Pessoa di-lo e Eduardo Lourenço analisa-o – para além da construção redutora de uma vida idealizada. Ouvem-se os ecos: «Ficção verdadeira é só, e unicamente, Caeiro. É ele o “mito que é tudo”, a solução ideal e por ideal impossível». Isto afirma-o o ensaísta em «Pessoa Revisitado», o que é revelador da exigência de uma interpretação complexa – do mesmo modo que o é dizer: «A sua existência só por si significa que o nosso corte com a palavra que o ser pronuncia – verdade do ser e ser da verdade – não é incomensurável. Encontrar maneira de conjugar a palavra dolorosamente fechada da consciência solitária e a palavra silenciosa e aberta da realidade constitui o escopo único da sua aventura. A sua poesia é o lugar do diálogo entre ambos». Consciência e realidade, eis o confronto essencial que se estabelece. Mitos e factos encontram-se e desencontram-se, sendo que só através dessas duas facetas poderemos compreender o que nos rodeia – e quem, afinal, somos. Há assim os planos mítico-fictício e fictício-temporal, povoados pelos heterónimos, mas há ainda «o lugar geométrico da ambiguidade e da oscilação» que só o ortónimo Fernando Pessoa, ele mesmo, pode ocupar. Afinal, é o Portugal de que fala Miguel Real, ao visitar o pensamento do último século (sem esquecer que mergulha as suas raízes nas mais antigas tentativas para nos descobrirmos), que está aqui presente e que vai de uma leitura providencialista a uma lógica racional – por entre ambiguidades e incertezas. Portugal não pode, contudo, comportar explicações unívocas e simplificadoras, nem de eleição nem de exclusão, precisa, sim, da força unificadora da vontade que compreenda e supere o mito. Mais do que recusar o mito, impõe-se assumi-lo, percebê-lo, criticá-lo e partir dele para a emancipação.
A IMPORTÂNCIA DO DESASSOSSEGO
Lembremo-nos, por um momento, de Bernardo Soares: «Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita e que a menos segura das nossas contemplações estéticas será a daquilo que escrevemos. Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos não dê sono que não pudesse dar-nos um sono mais calmo ainda. E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar se viessem na tarde». Partamos da imperfeição e recusemos o fatalismo. No deambular pessoano encontramos a vida, sob o olhar intenso do visionário. «Quem me dera que eu fosse o pó da estrada. / E que os pés dos pobres me estivessem pisando». Rua do Arsenal, Rua da Alfândega, Cesário Verde, Lisboa revisitada, o espelho mágico partido, a passagem das horas, cartas a Ophélia, chuva oblíqua… A cada passo sente-se o tempo, diverso, heterogéneo, incerto. «Sentir tudo de todas as maneiras, / Viver tudo de todos os lados». E há ainda a nostalgia do tempo que não regressa – «No tempo em que festejavam o dia dos meus anos / Eu era feliz e ninguém estava morto» – ou a verdadeira invocação das raízes – «Eu nunca guardei rebanhos, / Mas é como se os guardasse…». De que falamos, afinal? Numa noção universalista e aberta do ser e da verdade. Pessoa vestiu em roupagens novas o que vem detrás de ligação entre as fontes primordiais e a acção. Ruffato compreendeu-o bem. E Eduardo Lourenço diz, no fecho do seu imprescindível «Pessoa revisitado» (tão tardiamente percebido), que o poeta «foi uma espécie de aparição fulgurante descida das brumas culturais alheias ao nosso desterro azul, para nele inscrever em portuguesa língua o mais insubornável poema jamais erguido à condição exilada dos homens na sua própria pátria, o universo inteiro».
Guilherme d’Oliveira Martins
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