A VIDA DOS LIVROS
de 21 a 27 de Março 2011
“O Tesouro Escondido – Para uma Arte de Procura Interior” (Paulinas, 2011) de José Tolentino Mendonça é obra de um poeta consagrado sobre temas de espiritualidade contemporânea, escritos à luz da conhecida parábola de S. Mateus (13, 44-46), segundo a qual o Reino do Céu é semelhante a um tesouro escondido num campo. Um homem encontra-o e volta a escondê-lo. Cheio de júbilo, vende tudo e compra o campo… É bom falar de um Poeta no dia da Poesia, mesmo que aqui tenha escrito em prosa.
GUARDAR UM TESOURO E CUIDAR DE UM SEGREDO
Esse campo já referido é comparável ao exemplo do negociante em busca de boas pérolas. Uma vez encontrando uma pérola de grande valor, o homem vende tudo o que tem e compra a pérola. A metáfora é atraente e tem sido usada para descrever situações muito diversas – ligadas à procura de um bem, de um valor ou de uma riqueza. Jacques Delors, quando elaborou o relatório sobre a Educação para o século XXI, na UNESCO, deu como título a esse importante documento “Um Tesouro Escondido” (“Un Trésor est caché dedans”), para significar como a aprendizagem é uma riqueza fundamental. E não é por acaso que aqui falo de aprendizagem porque essa é a verdadeira riqueza, para além de todos os programas e discursos abstractos sobre o tema. E, na linha dessa imagem do tesouro, o escritor cita S. Kierkegaard, quando este afirmava e recomendava “a deliciosa ocupação de deixar amadurecer um segredo”. As referências a um tesouro e um segredo significam, aliás, a procura do que verdadeiramente pode valer. E assim os actos de guardar ou de esconder revelam-se como enriquecedores – já que somos capazes de reconhecer valor a algo que nos diz respeito.
TENTAR COMPREENDERMO-NOS
Procurar perceber quem somos, compreendendo-nos, exige capacidade de dar e receber, entendimento que leva a tirar consequências do largo caminho para a condição humana, entre a solidão e a companhia, entre o silêncio e o barulho, entre ser e não ser (que Agostinho da Silva dizia contrapor-se, na nossa cultura, à alternativa de Hamlet, ser ou não ser). E se falo do dar e do receber, recordo que a arte de educar e de aprender exige sempre a ligação biunívoca do mestre e do aluno. José Tolentino Mendonça trata no livro de diversos temas, bem ilustrados nos respectivos títulos – a lâmpada de Deus não se apagou; acende a tua candeia, os velhos deveriam ser como os exploradores, Deus faz-me sorrir, a nossa vida é uma paisagem onde Deus se vê, mostra-nos o Pai reconciliar-se com a beleza, rezar até a impossibilidade de rezar, a pergunta do meio caminho, Emaús laboratório da fé pascal, mais do que viajantes, peregrinos, e o «Magnificat» é talvez o mais belo poema… Através deste roteiro é a vida interior que é procurada com argumentos persistentes e acessíveis.
O tema da beleza e do bem tem uma especial atenção. Invoca-se a afirmação ou o verdadeiro repto de Bento XVI no Centro Cultural de Belém: «Fazei coisas belas, mas sobretudo fazei das vossas vidas lugares de beleza». O tema é tudo menos fácil, uma vez que está longe de ser acessível, para além de considerações simplificadas. Não é paradoxal a relação entre Jesus Cristo e a beleza? No entanto, apesar dessa contradição conduz-nos à compreensão de que «beleza é verdade e verdade é beleza». No entanto, temos de entender que «em Cristo sofredor também se aprende que a beleza da verdade acolhe igualmente a ofensa, a dor e mesmo o sombrio mistério da morte, e que ela só pode ser encontrada quando se aceita o sofrimento, não quando se procura ignorá-lo» (como diz o Papa).
OS VALORES PERENES
O justo e o verdadeiro constituem os valores perenes que não podemos deixar de ter sempre presentes. Daí a necessidade de uma reconciliação com a Beleza do cristão, «tão decisiva na maturidade de um percurso espiritual». E Platão explicou-nos qual a força indiscutível do impacto da beleza – «um «fluxo», que «aquece e rega a essência». E ao presenciarmos a luta de Jacob com o Anjo, percebemos que se trata de mais do que um combate físico, sendo uma procura da verdade pela valorização do confronto (o «agon»). «O Belo de Deus (diz o autor) convoca o homem para o seu destino final, revela-lhe a real grandeza da verdade». O que está em causa, no fundo, é a compreensão da hierarquia de valores – uma vez que é o vazio dessa distinção que levava Herman Broch a acusar a sociedade presente de indiferença e de desatenção aos valores e aos ideais. O desenvolvimento humano e histórico foi, contudo, pela experiência cristã e merece uma especial atenção que nos remete para algumas assombrosas expressões de beleza, como, na arquitectura religiosa, os exemplos de Miguel Ângelo e de Gaudi, ou as impressões incandescentes transcritas pelos místicos – desde Hildegarda de Bingen a S. João da Cruz, passando pelas expressões iconográficas, de que o sonho de Santa Teresa, de Bernini, é um exemplo maior. E vem à memória o verso de Dante, num dos pórticos da “Divina Comédia” – “A meio caminho desta vida / me vi perdido numa selva escura” – «Nel mezzo del cammin di nostra vita / mi ritrovai per una selva oscura / ché la diritta via era smarrita». E José Tolentino Mendonça, emblematicamente, afirma que «a ordem do sagrado reivindica para a pergunta dói meio caminho o horizonte e a experiência do amor». E o Mestre Ekhart deixa-nos a invectiva sublime: «É preciso que haja silêncio, ali onde essa presença deve ser percebida». Experiência do amor, silêncio, procura e descoberta, segredo, paradoxo, incindibilidade entre razão e fé, dignidade das pessoas, universalismo do respeito – eis a multiplicidade de temas e de apelos que o escritor nos traz com este “Tesouro Escondido”. E, surpreendentemente, sobretudo talvez para os mais distraídos, para aqueles que não viram que a alegria, feita de humor e ironia, mas também de inteligência arguta e de sentimento, leva à essência da vida, conduzindo-nos à riqueza de “O Riso de Deus”, título de uma obra de António Alçada Baptista, cujo tema muito ajuda à alegria genuína que permite chegar à transcendência com genuinidade e amor (agapé). Talvez por isso no capítulo 21 do Livro do Génesis, quando Sara dá à luz o seu filho, que já não esperava poder ver nascido, Sara dá ao bebé o nome de Isaac, que significa literalmente: “Deus sorriu”.
RECORDAR SIMONE WEIL
Note-se que essa encruzilhada entre a liberdade e o amor, entre a sensibilidade e a alegria leva Simone Weil (em “Espera de Deus”, publicada na colecção Teofanias) a referir-se à oração do “Pai-Nosso” em grego deste modo: «A doçura infinita deste texto tomou-me então, de tal forma, que durante alguns dias não consegui impedir-me de o recitar continuamente. Uma semana depois, comecei a vindima. Recitava o Pater em grego todos os dias, antes do trabalho, e repeti-o não poucas vezes na vinha. Desde então, impus-me como única prática recitá-lo uma vez cada manhã, com uma atenção absoluta. Se durante a recitação a minha atenção se desvia ou deixa adormecer, recomeço até que tenha obtido, por uma vez, uma atenção absolutamente pura». E continua a longa citação que este “Tesouro” transcreve: “Os ruídos, se os há, não me chegam senão depois de atravessarem este silêncio. Durante esta recitação ou noutros momentos Cristo está presente em pessoa, mas a sua presença é infinitamente mais real, mais lancinante, mais clara e mais plena de amor do que a daquela primeira vez em que tomou”. Nota-se, com nitidez, que é a procura de um tesouro escondido que aqui está também presente. Chegamos, assim, ao elemento crucial de uma experiência de amor e alegria, fora das considerações passageiras ou superficiais. Este pequeno livro é, assim, fonte de muitas surpresas positivas e acolhedoras, sábias e pertinentes. O irónico dinamarquês insiste, e bem, que há uma “deliciosa ocupação de deixar amadurecer um segredo”
Guilherme d’Oliveira Martins
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