de 14 a 20 de Março 2011
José Maria Eça de Queirós (1845-1900) mantém-se presente nos tempos que correm. A palavra presente substitui actual, para que não haja simplificações abusivas. Não se trata, porém, de dizer que tudo se manteve inalterável (com Dâmaso Salcete ou Tomás de Alencar ao virar da esquina) e que a actualidade se mantém tal e qual. Houve mudanças significativas no país, mas há elementos duráveis na análise do autor de “Os Maias” (1888) ou de “O Conde de Abranhos” (1925). Eça desenha uma sociedade em transição, assente nos empregos públicos e nos favores do Estado. É o naturalismo em acção, aqui ou ali polvilhado por um humor fino que procura representar uma sociedade distante e periférica, relativamente aos grandes centros. E quando hoje assistimos à crise da dívida pública soberana, vêm à baila as conversas do banqueiro Cohen relativamente ao dinheiro e aos seus enredos…
DESENTRANHAR O PORTUGAL QUE ESPERA…
Eduardo Lourenço afirmou que “não é susceptível de discussão o amor (e o fervor) com que a Geração de 70 tentou desentranhar do Portugal quotidiano, mesquinho e decepcionante, um outro, sob ele soterrado, à espera de irromper à luz do sol” (“Labirinto da Saudade, ed. 2000, p. 93). Ora, ao lermos Eça de Queirós, impõe-se a pergunta – o que se mantém actual na sua obra? E que país existe por «desentranhar», ao abrigo desse «criticismo patriótico», em que Eduardo Lourenço vem insistindo, como voz clamando no deserto. Não podemos cair na conclusão fácil de que o país é o mesmo ou radicalmente diferente. Qualquer simplificação será sempre caricatural. De facto, Portugal é diferente hoje do que era no final do século XIX. Mas, quando lemos os principais intelectuais e críticos desse tempo assaltam-nos as semelhanças, que têm de ser vistas com as cautelosas distâncias. A chamada Geração de 1870 obriga, porém, a uma especial correcção crítica: de facto, estamos perante analistas de raríssimo talento, com uma inteligência de indiscutível evidência, que souberam colocar-se no lugar da intelectualidade europeia mais avançada e lúcida do seu tempo. A perspectiva crítica deu-lhes uma distância que hoje permite compreendermos melhor o que disseram, concedendo essa reserva uma curiosíssima garantia de actualidade. Se virmos bem, Antero, Oliveira Martins e Eça de Queirós não são portugueses comuns do seu tempo. Viram mais longe e largo, e é isso mesmo que lhes permitiu alcançar um especial sentido de pertinência presente, que nos leva à ilusão de julgar que o país é o mesmo, sem o ser exactamente. No entanto, temos a nítida sensação de encontrar nesses argutos textos algo de familiar ou próximo. E isso não acontece por acaso. De facto, há diferenças e coincidências na sociedade. O país rural não existe já, a distância enorme entre a cidade e as serras reduziu-se, o atraso social endémico mudou de natureza, os dualismos profundos, se se mantêm, tornaram-se diferentes, e as desigualdades que persistem reportam-se a termos de comparação que se transformaram muito. Ainda por cima, não podemos esquecer que as referências queirosianas se enraizaram bastante no mundo português letrado e culto (ou por leitura ou por reminiscência). É difícil de encontrar o Conselheiro Acácio, mas o seu espírito e os seus óculos fumados persistem onde menos se espera. O mesmo se diga de Eusebiozinho, de Palma Cavalão, de Gouvarinho, de Dâmaso ou de Alencar – mas sobretudo de João da Ega, de Carlos da Maia, de Zé Fernandes, de Jacinto, de Gonçalo Mendes Ramires ou de Fradique e do inefável Pacheco. Os ecos dos quadros queirosianos chegam-nos ainda hoje como as análises cortantes das “Histórias” de Oliveira Martins, sendo “Os Maias” a genial tradução romanesca do “Portugal Contemporâneo”. E diga-se que, se alguns criticam a dispersão de personagens e de temas na saga de Eça, a verdade é que essa é uma riqueza da obra que magistralmente contribuiu para o repositório de personagens representado caricaturalmente por João Abel Manta.
A MATÉRIA-PRIMA DE EÇA
Apesar das distâncias, o certo é que há algo na matéria-prima utilizada por Eça que permanece e que mantém actualidade: a ciclotimia portuguesa, o peso do Estado omnipresente com o seu funcionalismo (o “comunismo burocrático”) e a dependência do exterior. Quanto à ciclotimia, eis-nos a oscilar entre a invocação das glórias passadas com um orgulho histórico, tantas vezes desajustado, e a consideração da mediocridade contemporânea (que não é pior nem melhor que a de muitos dos nossos vizinhos, mas que se torna mais evidente quando se insere na tal oscilação entre a glória e a decadência). A verdade é que essa alternância entre nos considerarmos os melhores e os piores do mundo agrava as comparações e as ilusões – o que leva à ambiguidade essencial de “A Ilustre Casa de Ramires” – ainda tão incompreendido… Já quanto ao peso do Estado, devemos referir que o nosso centralismo ancestral resulta da precedência do Estado relativamente à nação, com a inevitável concentração de poderes e o inexorável formalismo destituído de responsabilidade prática. É essa rígida centralização de poderes do Estado que leva à dependência relativamente à Arcada e S. Bento, que tão nitidamente se encontra na análise de Eça, desde Artur Curvelo até ao Conde de Abranhos – e que se prolonga até aos nossos dias no nosso Estado. Essa lógica de dependência, com sequente dificuldade de mobilização dos cidadãos e dos poderes locais (para além do caciquismo) liga-se a outra dependência que a vida económica (sobretudo num tempo de globalização) revela e que tem a ver com as vicissitudes do endividamento. Se recordarmos o jantar do Hotel Central em «Os Maias», depressa compreenderemos que aquilo que preocupa aqueles convivas é, a um tempo, a evolução da mentalidade literária e das escolas de pensamento, tema muito sentido pelo próprio autor (representado, de algum modo, por um alter ego, «sui generis» e complexo, que começa em João da Ega, mas que não existe só, uma vez está vive em ligação com Carlos da Maia, como se se tratasse de um tandem), bem como as repercussões da incerteza financeira e económica, em razão da significativa dependência de Portugal relativamente à economia europeia, em especial através do crédito, já que a história portuguesa oitocentista se confundiu amiúde com a dívida pública e as crises bancárias.
O JANTAR DO HOTEL CENTRAL
«O Cohen colocou uma pitada de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar ‘absolutamente’. Os empréstimos em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. Lembramo-nos bem da passagem. E depois: « – A bancarrota é tão certa, as coisas estão tão dispostas para ela – continuava Cohen – que seria mais fácil a qualquer, em dois ou três anos, fazer falir o país»… Isto, enquanto Ega e, surpreendentemente, Alencar, sonhavam com uma revolução. A história económica portuguesa do século XIX foi longamente dominada pelas crises bancárias (1827, 1846, 1876 e 1891) e pela evolução da dívida pública. As guerras civis contribuíram para essa instabilidade até 1851. Já em 1876 tudo se concentrou na bolha especulativa gerada pela proliferação de entidades bancárias; enquanto em 1891 foi a bancarrota argentina que quebrou a casa Baring de Londres, ligando-se à redução da remessa dos emigrantes do Brasil por causa do fim da escravatura e da implantação da República. E a dívida pública explodiu. Assim, a profecia de Cohen cumpriu-se, houve o convénio dos credores externos de 1902 (com o empréstimo de 99 anos, ao juro de 3 por cento) e um longo purgatório português nos mercados financeiros. Entende-se que a pergunta sobre a actualidade de Eça obriga não a ressuscitar Abranhos ou Dâmaso, mas a desentranhá-los… O que reclama, antes de tudo, exigência crítica.
Guilherme d’Oliveira Martins
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