A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

No momento em que assinalamos o primeiro centenário do nascimento de Orlando Ribeiro (16.2.1911 – 17.11.97) referimos Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (Sá da Costa, 4ª ed., 1986), um livro científico que é uma obra-prima da literatura portuguesa, do qual Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos factores e manifestações relevantes, como é que “Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição” – na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo. Guilherme d’Oliveira Martins

de 21 a 27 de Fevereiro 2011



No momento em que assinalamos o primeiro centenário do nascimento de Orlando Ribeiro (16.2.1911 – 17.11.97) referimos Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (Sá da Costa, 4ª ed., 1986), um livro científico que é uma obra-prima da literatura portuguesa, do qual Ruben A. disse tratar-se do livro mais notável escrito em Portugal nos meados do século passado… Em lugar de considerações apressadas, trata-se de indagar, através dos diversos factores e manifestações relevantes, como é que “Portugal é mediterrânico por natureza e atlântico por posição” – na fórmula tornada clássica de Pequito Rebelo.




QUE PORTUGAL?
“Disposto de través na zona mediterrânica, bem engastado numa península que é como a miniatura de um continente, o território português abre-se para o mundo por uma vasta fachada oceânica” (p.131). O traçado de viés é acompanhado de alternâncias climáticas e da coexistência do clima oceânico e da secura quente. E é a “vigorosa oposição das terras altas e montanhosas, cortadas de vales profundamente incisos “, as repercussões no revestimento vegetal define uma terra de contrastes. Norte e Sul – o primeiro é atlântico, verdejante, húmido, com “gente densa”; o segundo mediterrâneo, com longos estios e escassamente povoado. Litoral e Interior – o país vai desde a verdura espessa, “banhada na luz doce e húmida” do noroeste até à aridez das terras de além Marão; desde a variegada aptidão rural do Vouga ao Sado ou do sul algarvio até aos monótonos descampados alentejanos… Terras altas e baixas, Serra e Ribeira, Campo e Monte, Montanha e Vale, Terra Alta e Terra Chã – assim define o povo a complexidade e as oposições, bem evidentes na economia e no povoamento. Desde a montanha húmida do norte e da economia agro-pastoril tradicional até aos relevos menos acentuados, secos e descarnados do sul, “onde o gado miúdo e as queimadas degradaram a floresta primitiva”, temos os traços de uma complementaridade e de uma coerência meridional. Assim, a unidade de Portugal é em grande parte obra humana – que há mais de sete séculos define uma entidade política antiga e estável.


DAS RAÍZES À ACTUALIDADE
Orlando Ribeiro não se limita a interrogar a terra. Olha sempre as gentes e a sua vontade, procurando as “raízes antigas” da identidade. No fim do neolítico fala de três áreas de civilização – a do levante, a dos planaltos centrais e a da faixa oeste. E no Oeste peninsular recorda a “civilização megalítica ocidental”, ligada igualmente à Bretanha, ao País de Gales e à Irlanda. Aí estão os redutos célticos da Galiza e de Portugal. E a sul temos as influências dos povos mediterrânicos – fenícios, gregos, cartagineses e a “brilhante civilização indígena” dos Tartessos no Guadalquivir. Os tempos vão revelando as diferenças e as ligações, as continuidades e as descontinuidades. Os conventi romanos, a organização administrativa dos suevos e dos visigodos, as desinteligências da monarquia goda, a invasão moura, a influência árabe, a reconquista, a coexistência das zonas estabilizadas dos reinos cristãos a norte e dos reinos taifas no meio dia com uma zona intermédia de incerteza e de alternância de influências – tudo nos vai revelando uma multiplicidade de elementos, num curioso melting pot, que vai gerando a autonomia ocidental peninsular. O formigueiro humano e a intensa actividade rural de Entre Douro e Minho no tempo da reconquista denuncia o código genético do que será depois a unidade política que origina Portugal. E Portucale, junto à foz do Douro, vai ser matriz do corpo político donde sairá o Estado português – Estado que precede a Nação. Portucale serve, desde cedo, após a reconquista do século IX, como designação dos domínios cristãos a sul do Lima. No fim do século X, há já um condado (e até há um fugaz rei Ramiro – entre 926 e 930) e, pouco mais de cem anos depois, D. Henrique de Borgonha verá ser-lhe atribuída a tarefa arriscada, incerta e difícil de consolidar e dilatar a influência cristã na região moçárabe de Coimbra para sul, além da linha Mondego/Serra da Estrela, tendo o Tejo como horizonte. No sul, almorávidas e almoádas dominavam o Magrebe e o Al-Andaluz, até ao nosso Al-Gharb (o Ocidente) com pouca actividade agrícola e largos descampados, apesar das inovações de influência árabe nos vinhedos, olivais, pomares e hortas regadas. Atlântico frente ao Mediterrâneo. São os contrastes naturais que determinam ainda a deslocação de populações. As vindimas do Douro, as ceifas da Terra Quente, a apanha da azeitona na Beira Baixa, as ceifas no Alentejo, a tirada da cortiça obrigavam a que houvesse movimentos internos, sazonais, de gentes. Nos arrozais são exímios os caramelos do Mondego e do Vouga, bem como os gaibéus do norte do Ribatejo ou os avieiros da foz do Liz… Ao Ribatejo e ao Alentejo chegam os minhotos e pica-milhos, os beirões e os ratinhos. E em Lisboa e na Caparica encontramos as varinas e varinos de Ovar, como é bem de ver, ao lado dos pescadores de Ílhavo. E em Azeitão, Orlando Ribeiro descobre a curiosíssima distinção entre os caramelos de estar e os caramelos de ir e vir, ou seja, os colonos permanentes e os migrantes periódicos. É este o entrecuzar de influências que reforça, aliás, o melting pot e a identidade portuguesa complexa e diversa.


O NÓ GORDIO DAS REGIÕES
“O que caracteriza as regiões geográficas de Portugal é o padrão miúdo e a rica variedade de aspecto e contrastes” (p. 141). As transições são graduais e, de novo, o Mediterrâneo e o Atlântico marcam os dilemas de definição. O Norte Atlântico é o “tronco antigo e robusto” da nação, dominado pela abundância de chuvas, pela riqueza da terra e pela vitalidade das populações. É uma região de intensa diversidade e de policultura. O Porto velho é o pólo histórico indiscutível da região, mas Braga pontua como sede do velho arcebispado. A diversidade urbana coexiste com a intensidade rural. As montanhas do Minho, as serras do Douro e do Vouga assemelham-se, mas o povoamento dá-lhes múltiplas facetas na actividade e nas tradições. O Noroeste é, desta forma, uma “unidade natural definida pelo predomínio dos caracteres atlânticos, unidade histórica mantida através de uma população antiga e densa que, pelo seu número e homogeneidade, veio a constituir o elemento aglutinante do Estado português” (p.148). Numa síntese feliz, O. Ribeiro dá-nos o sinal das diferenças, que se unem e se completam, e dos elementos comuns. Sentimos a História a fazer sentido – e os reinos cristãos a espraiarem-se naturalmente para a Beira Alta, em direcção ao Mondego e à Cordilheira Central, passando pelo Dão vinícola e por Viseu e indo até à Estrela, “enorme reservatório de águas límpidas e de grandes desníveis” (p.149). No Norte Transmontano “a paisagem carrega-se de tons severos, cinzentos, acastanhados. A luz torna-se mais crua, a terra mais dura e a gente mais retraída”. Para cá do Marão, mandam os que cá estão! O arvoredo rareia. Desapareceram os castanheiros, a batata cultiva-se no planalto. A Terra Fria e a Terra Quente marcam uma paisagem de extremos. Nas vertentes do Douro, os matagais deram lugar no séc. XVII aos formosos vinhedos do “vinho fino”, nos terrenos de xisto. A Régua é o epicentro e dali sai o vinho, Douro abaixo, para se tornar do Porto, sob os auspícios da colónia britânica. A praga da filoxera do séc. XX dizimou as vinhas. Algumas foram substituídas por amendoeiras e oliveiras. Mas o vinho continuou a ser o grande símbolo da região… No Sul, o Alentejo singulariza-se pela monotonia da planície. Mas as terras meridionais são heterogéneas, começando na zona de transição do sopé da Cordilheira Central, a sul do Fundão, na Portela de Alpedrinha, onde a cova da Beira anuncia as planuras de além Tejo, indo, para oeste, através da planície aluvial do Mondego e da cidade de Coimbra até ao grande maciço florestal de Leiria. Depois, há o polimorfismo da Estremadura, os maciços calcários, os barros basálticos dos arredores de Lisboa, o microclima da romântica Sintra, a área de influência de grande metrópole mediterrânea e a península de Setúbal, o santuário natural da Arrábida e a sua floresta mediterrânea. Para leste, estão o Ribatejo, a lezíria, Santarém e o vale celebrado por Garrett em “As Viagens na Minha Terra”, que abre para sul na “imensidão de terra lisa ou apenas quebrada em frouxas ondulações…” Aí está Évora, “a cidade mais bela de Portugal”, no dizer do mestre, repositório vivo da história portuguesa. E vêm depois o Baixo Alentejo, com Beja como centro, e os dois Algarves – a serra e a orla marítima, lugar de encanto e amenidades – “nenhuma outra região portuguesa possui uma rede urbana tão antiga, tão densa e tão importante”, com uma profunda organização romana e muçulmana, tendo esta passado quase intacta ao domínio português… O Portugal de Orlando Ribeiro é uma encruzilhada de influências, entre o Mediterrâneo e o Atlântico, atenta à complexidade e à reversibilidade dos movimentos de uma geografia fundamentalmente humana. Por isso, a “severa disciplina da Ciência”, a que sempre foi fiel, não deveria fazer perder “a amorosa compreensão da terra e da gente, que constitui a essência da geografia”.


Guilherme d’Oliveira Martins

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