A VIDA DOS LIVROS
de 6 a 12 de Dezembro de 2010
“Teoria Tridimensional do Direito, Teoria da Justiça e Fontes e Modelos do Direito” (INCM, 2003) de Miguel Reale é um volume precioso para o conhecimento e compreensão da obra do seu autor, cujo centenário do nascimento acaba de ocorrer (7.11.2010). A obra publicada em Portugal graças ao empenhamento pessoal de António Braz Teixeira, permite um contacto fecundo com uma reflexão muito rica sobre a filosofia do Direito numa perspectiva actual, a partir da experiência de alguém que parte da necessidade de fazer uma ponte entre a tradição e a modernidade. Uma vez tive o privilégio, a convite da Academia Brasileira de Letras, de invocar a memória do Mestre do pensamento, permito partilhar uma síntese da minha comunicação feita há poucos dias no Rio de Janeiro, por amabilidade do meu amigo Marcos Vinicios Vilaça, Presidente da Academia.
MIGUEL REALE, REFERÊNCIA CÍVICA
Conheci Miguel Reale (1910-2006) em casa de Celso Lafer, regressado de Lisboa, onde fora homenageado. Falámos de um tema que lhe era caro – o consentimento dos cidadãos como pedra angular do Estado moderno. Aristotelicamente, o filósofo procurou o justo meio à luz do Estado contemporâneo – com as dificuldades inerentes à evolução do Estado de bem-estar, visando entender o caminho de Kant até Hegel. Foi assim que descobriu um labirinto – com a avidez do estudioso informado e do experimentador incansável, que criticou o determinismo, entendendo que o mercado não permitiria, só por si, a realização da justiça, pelo que haveria que ligar liberdade e justiça, seguindo a atraente fórmula de Carlo Rosselli: «tornar liberal o socialismo e socialista o liberalismo». Aos 21 anos encontramos esta preocupação e depois a aproxima-se de Plínio Salgado, a partir da necessidade de um Estado forte, capaz de controlar a oligarquia económica e de ser alternativa ao capitalismo e ao colectivismo. Ao ler, todavia, Labriola, Croce e Durkheim, Reale põe a tónica na necessidade de limitar os poderes do centralismo estatal. É o tempo em que acompanha a génese da política do «New Deal» de Franklin D. Roosevelt. Getúlio Vargas tornara-se, então, uma referência política contraditória, que atrai o jovem académico, o qual, no entanto, será obrigado ao exílio italiano, depois do «putsch» integralista de 1938. Em Itália, compreende o perigo do fascismo, já que havia uma grande distância entre a teoria e a prática totalitária. O anti-semitismo rampante choca-o e leva-o a outro caminho. «Qual será a ordem de amanhã? (…) a ordem de amanhã não está em nenhuma doutrina. Não está no nazismo. Não está no fascismo. Não, também, no liberalismo. Esses sacrifícios todos da humanidade estão demonstrando que marchamos para uma ordem mais humana, mais social, em que a Democracia será uma realidade».
ACADÉMICO E FILÓSOFO
Em 1943, vemo-lo essencialmente académico, na cátedra da Faculdade de Direito, defendendo a determinação da natureza do Direito a partir de três facetas – o facto, o valor e a norma – que são o fio de Ariadne que conduz ao regresso a Kant, que a guerra obriga a recuperar. Em 1947, regressa à política – compreendendo que as acções de poder não são ditadas por doutrinas, mas por orientações pragmáticas. Reale chega à reflexão e à filosofia, a partir do entendimento de que «o homem é o único ente que originariamente é e deve ser, no qual ser e dever ser coincidem». Mas a emergência das utopias radicais, o avanço do totalitarismo (estudado por Hannah Arendt) leva M. Reale a temer pela afirmação da democracia. E recordo a preocupação que me exprimiu sobre a importância do fenómeno financeiro público e tributário. O cidadão está perante o Estado, armado de direitos e de garantias. O consentimento dos cidadãos contribuintes é, assim, um elemento fundamental para a separação e interdependência de poderes, de Montesquieu, pedra angular do constitucionalismo, articulando as legitimidades da origem e do exercício, o primado da lei (rule of law) e a justiça como horizonte de valor. E Reale entendeu recordar-me que, para o seu percurso individual, muito tinha contribuído o contacto com o fenómeno orçamental, que permitiu uma mais rica abordagem jus-filosófica. Como salienta José Guilherme Merquior, num ensaio luminoso sobre o mestre, experiência é «a palavra nuclear no pensamento de Reale». E assim a história é fundamental para o filósofo brasileiro, desde que corresponda a um espírito objectivo, relacional e intersubjectivo – e não apenas objectivável. Daí o primado da pessoa humana e a importância da relação comunitária. No entanto, para Merquior, há dois optimismos de valor desigual que encontramos na obra e no ensino do professor de S. Paulo: um correspondente aos valores, que o autor considera complementares e solidários entre si, num sentido harmonioso de que Merquior duvida, em face da crítica de Max Weber baseada no antagonismo e na conflitualidade de valores; e o outro, ligado à ideia de uma elevação da humanidade através da filosofia.
COMPREENDER A SOCIEDADE
Reale demarca-se dos relativismos e assume (como Celso Lafer refere relativamente a Hannah Arendt) um contrato social horizontal, encarado como um pactum societatis, pondo a tónica na pessoa humana e aí baseando a teoria do Direito. Alceu Amoroso Lima falará, por isso, de «tentação da integralidade» em Reale, cuja obra filosófica é, contudo, «a mais importante sem dúvida do movimento brasileiro contemporâneo». E é esta perspectiva integradora que o leva a definir o Direito como só podendo ser «compreendido como síntese de ser e de dever ser. É uma realidade bidimensional de substractum sociológico e de forma técnico-jurídica. Não é, pois, puro facto, nem pura norma, mas é o facto social na forma que lhe dá a norma racionalmente promulgada por uma autoridade competente segundo uma ordem de valores». Afinal, o «erro maior do idealismo axiológico (para Reale) foi esquecer que a ideia de valor e de dever ser nos conduz directamente ao homem, assim como a simples ideia de homem implica a ideia de valor». Deste modo, cada pessoa constitui um valor-fonte de todos os valores. E Reale, distinguindo três opções, faz uma escolha. Estão em causa as concepções técnico-formal, sociológica e cultural. O filósofo opta pela concepção cultural – que se integra no realismo contemporâneo, aplicando, no estudo do Estado e do Direito, os princípios fundamentais da Axiologia, como teoria dos valores em função dos graus de evolução cultural. Assim, o Direito surge como uma síntese entre ser e dever ser – é facto e é norma, é facto integrado na norma, tal como exigido pelo valor. E os valores jurídicos são de dois tipos – os naturais (ou conaturais) à humanidade, como o valor mesmo da pessoa humana, que é o valor-fonte da ideia de justiça; e os adquiridos através da experiência histórica.
LIBERDADE E ESTADO DE DIREITO
No Estado democrático existe, porém, uma integração de liberdades, que obriga à limitação mútua de poderes (freios e contrapesos) e à partilha de responsabilidades. E assim a concepção do Estado de Reale concilia as exigências da autoridade e da liberdade – «o Estado que fere a liberdade da pessoa, atinge a sua própria essência». No campo do Direito não se concebe, porém, a soberania com exclusão da liberdade. Os valores não possuem uma existência ontológica, abstractamente: «existem nas coisas valiosas», e a pessoa realiza-as na sua própria experiência. O certo é que a justiça tem de funcionar como valor funcionalmente ordenador dos demais valores da experiência jurídica. Impõe-se a respectiva graduação hierárquica. Justiça e experiência têm de se ligar, para que liberdade e igualdade participem plenamente no processo dialógico da história. Sem liberdade não é possível a experiência axiológica, do mesmo passo que sem a justiça, que é sempre a expressão histórica da igualdade, não se mantém a convivência humana ordenada entre indivíduos e grupos sociais.
Guilherme d’Oliveira Martins
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