A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Anselmo Borges, num pequeno livro acabado de publicar pela Imprensa da Universidade de Coimbra – Religião e Diálogo Inter-Religioso (2010) – interroga-se sobre o diálogo religioso e cultural e põe o dedo no essencial do tema, que é controverso e tem gerado muitas dúvidas e perplexidades. Não sendo questão fácil, pelas muitas implicações que suscita, é extremamente importante poder contar com um livro como este, para irmos além das considerações vagas e bem intencionadas, entrando plenamente na discussão do diálogo efectiva, que pressupõe uma troca e uma partilha de ideias, de valores, de projectos e de desígnios. Num tempo em que a memória das tragédias do século XX se desvanece e em que a ameaça da violência no assalta em cada dia que passa, é indispensável empenharmo-nos em construir, dia a dia, as bases da paz de que precisamos, para que não se invoque Deus para legitimar a guerra, mas para que se parta do sagrado e da liberdade religiosa, para a paz dos corações, e não para a inútil e vã paz dos cemitérios.

A VIDA DOS LIVROS
de 8 a 14 de Novembro de 2010


Anselmo Borges, num pequeno livro acabado de publicar pela Imprensa da Universidade de Coimbra – Religião e Diálogo Inter-Religioso (2010) –  interroga-se sobre o diálogo religioso e cultural e põe o dedo no essencial do tema, que é controverso e tem gerado muitas dúvidas e perplexidades. Não sendo questão fácil, pelas muitas implicações que suscita, é extremamente importante poder contar com um livro como este, para irmos além das considerações vagas e bem intencionadas, entrando plenamente na discussão do diálogo efectiva, que pressupõe uma troca e uma partilha de ideias, de valores, de projectos e de desígnios. Num tempo em que a memória das tragédias do século XX se desvanece e em que a ameaça da violência no assalta em cada dia que passa, é indispensável empenharmo-nos em construir, dia a dia, as bases da paz de que precisamos, para que não se invoque Deus para legitimar a guerra, mas para que se parta do sagrado e da liberdade religiosa, para a paz dos corações, e não para a inútil e vã paz dos cemitérios.



UMA IDENTIDADE ABERTA
«A identidade não é estática, fixa, determinada de uma vez para sempre. Claro que cada um, cada uma, é ele, ela, de modo único e intransferível – a experiência suma desse viver-se cada um como único e irrepetível dá-se frente à morte, na angústia do confronto com a possibilidade do nada e da aniquilação do eu: ‘ai que me roubam o meu eu’, clamava M. Unamuno – mas fazendo-nos uns aos outros, de tal modo que ser e ser em relação coincidem». É que muitas vezes, ao falar-se de identidade, há a tentação de dar ênfase ao que é próprio, em lugar de olhar o outro e de procurar compreendê-lo. José Mattoso, ao reflectir sobre a identidade histórica não se tem cansado de insistir na necessidade de vermos o que nos caracteriza e o que nos distingue, como sinal de abertura e não de fechamento, como exigência de diálogo e de compreensão. No entanto, a tentação do fechamento e da uniformidade assalta a cada passo. Por isso, o multiculturalismo tem sido por vezes empobrecedor – não pelo apelo ao pluralismo, mas pelos caminhos paralelos que tendem a ignorar-se e resistem a intersectar-se e a influenciar-se mutuamente.


NUM TEMPO SECULAR
Charles Taylor, o filósofo canadiano, autor de A Secular Age (2007), que tem feito uma investigação exaustiva sobre o diálogo entre culturas e religiões, chama a atenção para que a compreensão e o respeito mútuo são factores fundamentais para que haja diálogo efectivo, reconhecimento do lugar dos outros e da diferença, coesão social e confiança – elementos cruciais para que exista democracia. «Os ateus precisam de falar com os crentes, os crentes precisam de falar com os ateus, e as religiões têm de falar umas com as outras». O diálogo é a chave para a solidariedade nas comunidades plurais do século XXI. A identidade faz-se, desfaz-se e refaz-se nas sociedades abertas e complexas e o grande apelo do presente é no sentido de a globalização não se tornar uma marca de indiferença e de uniformização. É fundamental que haja diferença, que cada qual seja ele próprio, mas também que a identidade seja cosmopolita, compósita e planetária, «com tudo o que isso significa de enriquecimento e ao mesmo tempo de complexidades e possíveis rupturas». Como lembra Anselmo Borges, «o outro é vivido sempre como fascinante e ameaça» – «porque o outro é outro como eu, e, simultaneamente, um eu outro, outro que não eu». Esta é a ambiguidade e a dificuldade suscitada pelo outro. Hóspede e hostil têm, afinal, a mesma etimologia, como hospitalidade e hostilidade. Eis a ironia da vida das palavras.


UM TEMA ACTUALÍSSIMO
Se o tema da identidade é actualíssimo, a verdade é que ele contém a ambiguidade que resulta da dificuldade e das resistências que há sempre na relação com o outro. A relação da Europa com a imigração hoje é ilustrativa dessa contradição. Os medos que se acumulam são disso mesmo demonstração. O mesmo se diga do tema da paz: Hans Küng tem dito que só o diálogo entre as religiões pode criar bases seguras para a paz («sem paz entre as religiões não haverá paz entre as nações, e essa paz supõe o conhecimento e o diálogo entre as religiões»). E lembre-se ainda o tema da violência, no qual o homem julga poder apoderar-se de um Deus infinito e omnipotente para compensar o seu carácter finito e mortal. Anselmo Borges insiste na ideia de que o nome de Deus não pode ser invocado como motivo de violência: «é intolerável que Deus se revele de muitos modos, quando cada um o considera propriedade exclusiva». E importa acrescentar o tema dos fundamentalismos, tão referido, mas tão pouco entendido. Os fundamentalismos de diversas índoles ligam-se à tentação de cada um se julgar possuidor da verdade toda. «Quem é o homem, um ser finito, para considerar-se senhor do Fundamento?». E daqui temos de seguir até ao tema da necessária dessacralização da política e à consequente separação das igrejas do Estado, que torna os cidadãos «livres de terem esta ou aquela religião ou nenhuma», em virtude da desconfessionalização do espaço público. Por exemplo, quando lemos o Tratado de Lisboa, verificamos que se fala de um diálogo aberto, transparente e regular com as igrejas e as comunidades religiosas. No fundo, a sociedade aberta precisa de uma relação cooperativa e de respeito diante do fenómeno religioso. Como diz Jürgen Habermas: «os cidadãos secularizados, no exercício do seu papel de cidadãos, não podem negar liminarmente um potencial de verdade às imagens religiosas do mundo nem pôr em causa o direito de os seus cidadãos crentes contribuírem, na linguagem que lhes é própria, para as discussões públicas». O antigo Presidente alemão Johannes Rau invocou a «secularidade esclarecida» como método de acção numa sociedade solidária. E Régis Debray, com quem tive o gosto de falar sobre estes temas, defendeu que o diálogo inter-religioso, como condição de paz e solidariedade, pressupõe um conhecimento das religiões – o que obriga a escola a aprofundar uma inteligência reflexiva e crítica sobre o fenómeno religioso. E não afirmou E. Schillebeeckx que «podemos e devemos dizer que há mais verdade (religiosa) em todas as religiões juntas do que numa só, e isto é válido também para o cristianismo»?


QUE DIÁLOGO AUTÊNTICO?
O diálogo autêntico é, porém, difícil, por isso Juan Masiá refere cinco pontos que nele devem estar presentes: conhecimento mútuo e partilha do que é comum; consciência do que aproxima e do que afasta e é incompatível; sentido autocrítico e reconhecimento do lastro da história que transportamos; capacidade para começar a construir um horizonte comum de linguagem e diálogo, não confundível com qualquer sincretismo ou esperanto das religiões; e entendimento de uma espiritualidade para além da perspectiva de cada religião. Daí a lembrança da parábola dos três anéis. O sultão Saladino perguntou ao judeu Melquisedech qual das três Leis (judaica, cristã ou islâmica) julgava ser verdadeira. E este recordou a parábola do anel belíssimo e precioso que deveria transmitir-se como sinal de permanência e de virtude de uma família. Chegou um dia em que um pai tinha três filhos, todos virtuosos, a que amava por igual. Como não soubesse como escolher, encomendou dois outros anéis, absolutamente iguais e contemplou os três sem ter de eleger um só herdeiro… «A questão ficou pendente, e assim continuou até hoje, sem se poder determinar o verdadeiro herdeiro». O tempo ficou suspenso, à espera de quem mostrasse a verdade da fé «mediante boas obras e amor». Lévinas fala de Ulisses e Abraão, um, viaja e regressa, o outro, parte e transfigura-se. A identidade e a diferença está nos dois, mesmo que Abraão simbolize a capacidade de se transcender…


NOTA – Esta obra será apresentada pelo autor, por Juan Masiá e por Miguel Oliveira da Silva em sessão do Centro de Reflexão Cristã – na Galeria Fernando Pessoa do CNC, dia 16 de Novembro, pelas 18,30h. 


Guilherme d’Oliveira Martins


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