A VIDA DOS LIVROS
de 1 a 7 de Novembro de 2010
Invoquei a memória de José Augusto Seabra na conferência do Porto sobre “Projectos e Realizações da República”, glosando um pequeno livro da autoria do poeta, universitário e ensaísta – “Cultura e Política – Ou a Cidade e os Labirintos” (Vega, 1986) – já que considero fundamental reflectir sobre a herança do republicanismo português, a partir da fecunda experiência intelectual da “Renascença Portuguesa” e da revista “A Águia”. Trata-se, sem dúvida, do mais importante movimento cultural português do século XX, não só pelo que representou em si, mas pela extraordinária sementeira de ideias que produziu. A propósito dele, encontramos, a um tempo, a heterogeneidade da ideia republicana e uma interessante síntese plural, que permite compreender a identidade portuguesa moderna.
REPUBLICANISMO PLURAL
A «Renascença Portuguesa» constitui um exemplo de como o republicanismo teve diversas leituras e exerceu uma influência multifacetada na evolução do século XX português. Recorde-se que no dealbar do movimento (em 1911), Teixeira de Pascoaes e Raul Proença apresentaram dois projectos de manifesto que, sendo bastante diferentes, representam aos olhos de hoje uma imagem significativa do que foi originalmente o projecto da “Renascença”. «O fim da “Renascença Lusitana” – escrevia Pascoaes – é combater as influências contrárias ao nosso carácter étnico, inimigas da nossa autonomia espiritual, e provocar, por todos os meios de que se serve a inteligência humana, o aparecimento de novas forças morais orientadoras e educadoras do povo que sejam essencialmente lusitanas». Proença, por seu lado, falava “em pôr a sociedade portuguesa em contacto com o mundo moderno, fazê-la interessar-se pelo que interessa aos homens lá de fora, dar-lhe o espírito actual, a cultura actual, sem perder nunca de vista, já se sabe, o ponto de vista nacional e as condições, os recursos e os fins nacionais”. Como salientou José Augusto Seabra: “o ideal patriótico é idêntico, apenas os meios de o atingir divergem, embora sejam afinal complementares, como Pascoaes, aliás, n’A Águia, intentará mostrar”. Ambos se demarcam do positivismo ou de lógicas partidárias redutoras, estando em causa o que Jaime Cortesão propunha: «dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana». Como dirá Pascoaes, havia que «criar um novo Portugal, ou melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, arrancá-la do túmulo, onde a sepultaram alguns séculos de escuridade física e moral, em que os corpos definharam e as almas amorteceram». As palavras Renascença e Regeneração são usadas no Portugal moderno de influência liberal, pelo menos desde 1820. “Renascer é regressar às fontes originárias da vida, mas para criar uma nova vida” (na expressão ainda do homem de Gatão). Vêm à memória os sinais renovadores provindos do Porto – 1820, o cerco, o impulso de D. Pedro após o desembarque dos bravos do Mindelo (onde estiveram Garrett, Herculano e o pai de Antero de Quental…), a influência portuense do Setembrismo (em que pontificaram os irmãos Passos), a guerra civil, a Maria da Fonte e a Patuleia, a Regeneração de 1851, o movimento da “Vida Nova” (1885), o magistério de Rodrigues de Freitas, a presidência de Antero de Quental na Liga Patriótica do Norte, o 31 de Janeiro, o manifesto dos emigrados políticos encimado por Alves da Veiga, o “Porto Culto” de Sampaio Bruno… Nos antecedentes próximos do 5 de Outubro de 1910 temos, assim, factores políticos (o Ultimatum, o 31 de Janeiro, os adiantamentos à Casa Real, a ditadura de João Franco), económicos (a perda de confiança, as imposições dos credores externos, a desorganização), financeiros públicos (o peso da dívida, a bancarrota de 1891, a falta de receitas fiscais estáveis), constitucionais (o esgotamento do rotativismo regenerador, a degradação do sistema partidário), educativos (a taxa de analfabetismo próxima dos 80%, a insuficiente cobertura escolar, o mal estar académico de 1907), culturais (o ambiente urbano favorável ao republicanismo, Junqueiro temível propagandista), e sociais em sentido amplo (tensões cidade/campo, falta de industrialização, ausência de política social).
PLURALISMO E CIDADANIA
Os republicanismos e as suas raízes são, assim, múltiplos. A partir de uma tradição forte, a “Renascença” e a revista “A Águia”, cuja 1ª série, dirigida por Álvaro Pinto, foi iniciada em 1 de Dezembro de 1910 (numa especial celebração), procuram um pluralismo eclético e aberto, apesar do apego de Pascoaes à saudade, não como referência passadista, mas “no sentido profundo, verdadeiro, essencial, isto é, o sentimento ideia, a emoção reflectida, onde tudo o que existe, corpo e alma, dor e alegria, amor e desejo, terra e céu, atinge a sua unidade divina”. Na “Renascença” estão Guerra Junqueiro, Antero de Figueiredo, António Carneiro, Leonardo, mas também Afonso Lopes Vieira, António Correia de Oliveira, António Sérgio, Raul Proença, João de Barros, Mário Beirão, Câmara Reis e Afonso Duarte, além de Fernando Pessoa e Mário de Sá Carneiro. Mas na origem estão Álvaro Pinto e Jaime Cortesão (vindos da “Nova Silva”, de inspiração anarquista, onde também pontificava Leonardo Coimbra), tendo o segundo chamado a Pinto “coluna vertebral do movimento”. Compreende-se, pela diversidade de intervenientes, que a “Renascença Portuguesa” tenha sofrido diversos sobressaltos – no entanto, olhando o impulso inicial, depressa descobrimos que, como movimento original representa a origem do que de mais significativo encontramos na cultura portuguesa do século XX – de Pascoaes a Leonardo, de Cortesão a Pessoa, do simbolismo ao modernismo, do lirismo ao racionalismo. Afinal, como dizia Raul Proença, havia necessidade de «homens de inteligência e de direcção espiritual», para dar dimensão à nova República. E Cortesão frisava: «a Renascença Portuguesa não era incompatível com as aspirações modernas».
COMBATER OS ERROS ANCESTRAIS
Leia-se “A Vida Portuguesa”, quinzenário do movimento, e veja-se que a preocupação fundamental é futurante: «resgatar a nacionalidade dos erros em que o desleixo e a incompetência dos políticos a lançaram». Cortesão é cortante em relação àqueles que se esqueciam das suas responsabilidades: «quase todos eles, nas suas ideias e projectos, têm um vago ar de filhos de pais incógnitos, um pouco esquecidos de que são portugueses”. E Leonardo Coimbra dizia ser fundamental “dar uma finalidade à vida nacional”, lembrando Cortesão (na senda de “Os Factores Democráticos na Formação de Portugal”, considerando que o Porto foi a nossa única cidade Estado) que o berço da Renascença é o Porto: «foi, na verdade, pelas suas origens, carácter e tendências, um movimento portuense». Leiam-se os textos de “A Águia”, em 1910 ou em 1912, e note-se a prevalência da elevação das ideias, o respeito mútuo e a serenidade da razão e do sentimento (como, por exemplo, no número 2, na invocação de Tolstoi), contra a cegueira sectária. Estamos, de facto, perante uma fecunda convergência, desde uma perspectiva espiritualista, representada por Pascoaes (e depois por Leonardo) até à razão cosmopolita de Sérgio e Proença, passando pelo modernismo e pelo futurismo de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada ou pelo humanismo universalista – capaz de tentar explicar a complexidade de quem somos. Nota-se a herança de Herculano e Garrett, a vontade nacional e a tradição romântica, mas também o sentido renovador e revolucionário de Antero, Eça, Oliveira Martins e Junqueiro e da Geração de Setenta, além do positivismo, do pensamento libertário e do socialismo cooperativo. Se falámos de projectos, verifiquemos que as realizações republicanas são fortemente condicionadas por factores complexos. No plano político, à ideia de regeneração da Pátria sucedeu instabilidade (dos partidos, dos governos, do regime, com emergência do sidonismo na conjuntura de guerra e regresso da nova República velha). No campo económico, em lugar da fixação da riqueza e da produção, houve os efeitos da Grande Guerra com inflação galopante e crise monetária. Nas finanças públicas, houve dois exercícios superavitários com Afonso Costa, mas persistiu a falta de receitas tributárias estáveis que a reforma fiscal de 1922 não resolveu, merecendo destaque a política de saneamento monetário de Álvaro de Castro. Quanto à Constituição, o parlamentarismo e a subalternidade da figura do Presidente da República geraram instabilidade (interrompida por Sidónio Pais). Na educação, houve muitas expectativas positivas, nas reformas de António José de Almeida (1911), de Leonardo Coimbra (1919) e de João Camoesas (1923) que, apesar de não terem efeitos imediatos na frequência escolar, definiram orientações positivas na valorização da qualidade do ensino. Na cultura, o cosmopolitismo e a abertura afirmaram-se, a exemplo da “Renascença Portuguesa” e das suas influências. No campo social, em sentido amplo, houve desvalorização dos movimentos sindicais e dos corpos intermédios, bem como uma perda na participação dos cidadãos, além de não ter havido condições para superar durável e positivamente a grave questão religiosa… Hoje, ao contrapormos projectos e realizações da República, sentimos na “Renascença Portuguesa” o fenómeno político e cultural, muito para além das correntes dominantes do Partido Republicano Português. As visões reformista, evolucionista, legalista, e revolucionária; o positivismo e as novas perspectivas filosóficas e científicas tiveram repercussões e produziram alertas, que se projectaram até à República de 25 de Abril de 1974, num sentido aberto, plural e democrático. Eis o que importa considerar.
Guilherme d’Oliveira Martins
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