A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Nas “Lendas e Narrativas” (1851), Alexandre Herculano procura construir o imaginário colectivo da pátria, através da criação de mitos através da ficção histórica. “Alcaide de Santarém”, “Arras por foro de Espanha”, “O Castelo de Faria”, “A Abóbada”, “A Dama do Pé de Cabra”, “O Bispo Negro”, “A Morte do Lidador”, mas também o relato da viagem “De Jersey a Granville” e a novela “Pároco de Aldeia” foram publicados de 1839 a 1844 no “Panorama” e têm um sentido pedagógico e criador de uma tradição verosímil que se deveria constituir em elemento fundamental para erigir o “espírito do povo”.

A VIDA DOS LIVROS
de 18 a 25 de Outubro de 2010


Nas “Lendas e Narrativas” (1851), Alexandre Herculano procura construir o imaginário colectivo da pátria, através da criação de mitos através da ficção histórica. “Alcaide de Santarém”, “Arras por foro de Espanha”, “O Castelo de Faria”, “A Abóbada”, “A Dama do Pé de Cabra”, “O Bispo Negro”, “A Morte do Lidador”, mas também o relato da viagem “De Jersey a Granville” e a novela “Pároco de Aldeia” foram publicados de 1839 a 1844 no “Panorama” e têm um sentido pedagógico e criador de uma tradição verosímil que se deveria constituir em elemento fundamental para erigir o “espírito do povo”.



HERCULANO COMO REFERÊNCIA CULTURAL
Como diz A.M. Machado Pires: “na celebração do bicentenário do seu nascimento, os portugueses dos conturbados inícios do século XXI devem olhar o autor de Eurico e da História de Portugal não como um ‘velho’ romântico sentimental e um patriota exaltado e fora de moda, mas como um raro exemplo de criatividade literária, de profundo amor à séria investigação historiográfica e de coerência de conduta”. Sendo um exemplo moral, Alexandre Herculano foi o cientista e o cidadão na acepção que ainda hoje podemos compreender e seguir, cuja exemplaridade deve ser referenciada. A sua coerência intelectual levou-o a romper com a mentalidade dominante no seu tempo, tendo dissabores fortes por causa desse choque. No entanto, passado o tempo e feita a releitura dos acontecimentos e das polémicas, podemos dizer que o intelectual se eleva no longo prazo como um símbolo, que se junta à figuras maiores da cultura portuguesa, como Camões, Sá de Miranda e Vieira. A sua vida está recheada de provas desde o exílio do jovem envolvido numa conspiração fracassada até ao exercício de uma vida cívica, autenticamente, desprendida de honras e prebendas. Soldado incógnito lutou de armas na mão pelo que acreditava – a causa da liberdade. Quando lemos as suas considerações sobre os ideais, notamos, por isso, que há o testemunho vivo de quem não fala no domínio dos sonhos, mas no plano realíssimo das dificuldades, das provações e dos dramas. E depressa trocou as armas pela pena e pelo estudo dos arquivos documentais. Apesar de todas as polémicas e incompreensões, de todos os juízos injustos e precipitados dos seus adversários, de todas as iras de que compreensivelmente foi assaltado ou das suas próprias paixões, manteve-se coerente na relação com Deus e os homens – “creio que Deus é Deus e os homens livres”…


LIGAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E LITERATURA
História e literatura, liberdade e criação tinham de se ligar. E Herculano fê-lo com serenidade e determinação, mas também com personalidade temperamental e nunca indiferente ou conformista. Em nome das convicções mais íntimas não pôde acomodar-se ao fanatismo dos clérigos miguelistas ou à cegueira dos que não queriam ver a importância do exercício crítico na análise dos acontecimentos históricos. O que o preocupava era a procura do ânimo capaz de realizar a vontade. Sem memória, o futuro torna-se pobre e frágil. Daí ter sido o pioneiro (de modo diferente, mas complementar de Garrett) no conhecimento do País, do seu património histórico, na respectiva preservação. A revista “Panorama”, órgão da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, é um exemplo único. Ainda hoje essa lição merece ser relida e actualizada e esse espírito tem de ser aprofundado. Bem recorda Machado Pires o que Vitorino Nemésio escreveu sobre “A Mocidade de Herculano”, uma obra-prima da literatura, do autêntico espírito universitário e um testemunho vivo sobre uma personalidade de excepção e uma época fundamental no lançamento das bases do tempo que ainda vivemos. Ao lermos a antologia literária, cuidadosamente preparada por A.M. Machado Pires (com Maria Helena Santana) vem-nos à recordação o entendimento de Maria de Lourdes Belchior sobre o facto de a poesia de Herculano ser um verdadeiro “breviário romântico”. E ainda hoje podemos perceber nessa escrita tensa e sentida uma compreensão exacta da época romântica e dos seus cânones, assumidos pelos grandes cultores europeus. E, ao lermos Eurico, o Presbítero ou O Monge de Cister, sentimos a encruzilhada da história recôndita e das inquietações contemporâneas. Eurico é a história, mas também é a confissão pessoal do autor – que lavava Nemésio (ainda ele) a dizer certeiramente que o romântico “desabafava nas costas dos mortos”.


UMA OBRA FUNDAMENTAL
A poesia marca a sua relação com o sagrado e com a pátria, O Bobo (1843) trata do mito fundacional português e procura exercer o valor pedagógico da narrativa, Eurico, o Presbítero (1844), com Hermengarda, representa a apresentação de “ícones do amor absoluto” romântico, que é também apelo a uma mentalidade livre, O Monge de Cister (1848) trata ainda da solidão sacerdotal, mas depressa se afasta do tema, para se centrar na culpa, no perdão, na honra e na descrição de uma justiça desumana e aleatória, já Lendas e Narrativas (1851) procura construir o imaginário colectivo nacional, através da ficção histórica (“a história conta-nos o facto; a tradição os costumes. A história é verdadeira, a tradição verosímil; o verosímil é o que importa ao que busca as lendas da pátria” – lê-se em “O Bispo Negro”), mas também da narrativa contemporânea (de Jersey a Granville). É verdade que, no final, Herculano se tornou o “Solitário de Vale de Lobos”. A figura romântica tomou sobre os seus ombros um destino – e afastou-se da ribalta que ajudou a encenar, sobretudo como alma paradoxal da Regeneração. E se falo de paradoxo tal se deve ao facto de ter construído num primeiro momento a hipótese positiva da governança (o termo é herculaniano), mas também de ter aberto o caminho à limitação do poder e à criação de uma oposição histórica. Afinal, fazer e desfazer o poder era para o cidadão fundamental, uma vez que o centro do liberalismo estava na limitação dos poderes e na capacidade de dar espaço aos povos e aos cidadãos, numa palavra, ao “governo do País pelo País”. O paradoxo acompanha-o sempre – é conservador perante a Revolução de Setembro de 1836, em nome da legitimidade criada em Évora Monte (1834), mas reformula o seu entendimento diante da nova Constituição de 1838, do mesmo modo que será o grande inspirador da acalmação do Acto Adicional à Carta Constitucional de 1852, em nome de uma sábia síntese entre cartismo e constitucionalismo. E é assinalável verificar como este conservador liberal nunca conseguiu ser reconhecido como tal – uma vez que, apesar do seu apego a princípios ancestrais e históricos, os mais conservadores nunca entenderam Herculano, uma vez que se deixaram enquistar numa lógica retrospectiva sem compreenderem a evolução do Antigo Regime para a liberdade. De qualquer modo, conhecemos em Herculano as resistências e as polémicas, as desconfianças e as críticas relativamente aos melhoramentos materiais e à abertura de fronteiras.


ROMÂNTICO E LIBERAL
Sempre que se tratou de escolher a liberdade com todas as suas consequências nunca hesitou, porém, como quando levantou a voz perante a proibição das Conferências do Casino Lisbonense – certo de que as ideias dos jovens promotores (que tanto o admiravam) não eram exactamente as suas. Assim, o agricultor de Vale de Lobos (revivendo a “aurea mediocritas” virgiliana) nunca deixou de estar atento ao que se passava no seu País – como patriota convicto no sentido romântico, preocupado com os fundamentos mas sobretudo com a vivência na acção e no governo da coisa pública. E, longe de um sebastianismo atávico e retrospectivo, Alexandre Herculano encontra o seu próprio “Desejado”, não como figura de um tempo ultrapassado (como na tragédia “Frei Luís de Sousa” do seu amigo Garrett), mas como personalidade viva e fugaz – o jovem e chorado D. Pedro V. Nele o historiador vê as qualidades do monarca liberal, do príncipe culto, do protector das artes e dos artistas, mas sobretudo defensor da justiça em todas as suas consequências.


Guilherme d’Oliveira Martins

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