A VIDA DOS LIVROS
de 11 a 17 de Outubro de 2010
«Tudo o que Sempre Quis Saber sobre a Primeira República em 37 mil palavras» (ICS, 2010) da autoria de Luís Salgado de Matos é uma pequena obra feita com grande cuidado, e com extraordinários espírito de síntese e sentido pedagógico. No ano das comemorações do centenário da República Portuguesa tivemos um vasto conjunto de livros alusivos à data, de valia desigual e com interesse muito irregular. Felizmente que entre as boas excepções consta este livrinho que, apesar de ter uma extensão reduzida, pressupõe uma grande reflexão e tem atrás de si muito estudo e sentido cívico. De facto, a Primeira República não pode ser analisada nos dias de hoje sem um forte sentido crítico, até porque a República restaurada em 25 de Abril de 1974 e a Constituição de 1976 foram muito marcadas pela necessidade de não se repetir os erros que tornaram fugaz e trágica a experiência iniciada em 1910. Luís Salgado de Matos optou, e bem, por analisar os claros e os escuros, as razões da vitória e os motivos da decadência, e o resultado aí está uma obra que surpreende positivamente pelo pormenor, pelo rigor dos elementos e pela clareza expositiva.
OS VALORES DA REPÚBLICA
Os valores da República vêm da Antiguidade. Encontramo-los nas cidades gregas e na República Romana e, quando percorremos a Itália, recordamos as mais remotas referências políticas. É a lógica republicana que sentimos – apesar (ou por causa dela) da tensão entre o Papado e o Sacro Império, representada na proverbial oposição entre guelfos e gibelinos. O próprio Maquiavel ocupou-se da reflexão sobre a unificação italiana – o que o obrigava a vislumbrar uma República que pudesse harmonizar virtude e fortuna. E se dúvidas houvesse, eis-nos a lembrar a «Respublica Christiana» e a sua complexidade. E recordamos ainda a Suiça, ancestralmente influente neste debate, onde a qualidade de cidadão da República de Genebra podia ser adquirida por nascimento, como com Jean-Jacques Rousseau, ou por vontade, como no caso de Voltaire. Cidade de Refúgio, república de cidadãos livres, eis o lema que ainda ostenta a pátria que recebeu João Calvino. O século XIX francês, na sequência do “terror” e da Vendeia, tornou a Revolução de 1789 uma referência, apesar das vicissitudes, designadamente as tentativas realistas e o impasse entre Bourbons e Orleães, que consolidou a III República, por quase todos considerada impossível ou efémera. Alexis de Tocqueville, no seu fundamental “L’Ancien Régime et la Révolution”, explica o fenómeno a partir de uma legitimidade popular e cidadã, que permitiu a participação, a coesão e a autonomia individual, na linha das raízes antigas. Foi a paixão da liberdade que se afirmou ao longo do tempo, ora em alta, ora decaindo, ora renascendo. E assim só vê apenas trevas na revolução francesa quem a quiser ver isoladamente, como se esta não se inserisse na História.
LEMBRANDO ALEXIS DE TOCQUEVILLE
No centenário da República em Portugal passa-se algo de semelhante ao que preocupava Tocqueville, uma vez que o regime saído em 1910 não pode ser visto isoladamente. De facto, o republicanismo português original não pode reduzir-se ao fugaz regime que durou até 1926. A revolução de 1820 teve raízes republicanas, a Constituição de 1822 teve um parentesco evidente com a Constituição espanhola de Cádis de 1812, a Revolução de Setembro de 1836 conteve uma configuração liberal radical, que, de algum modo, se projectou na Constituição de 1838, enquanto ainda houve óbvias influências republicanas desde as guerras civis (Maria da Fonte e Patuleia) à Regeneração de 1851, e em quase tudo o que se lhe seguiu. A monarquia liberal e os seus próceres beberam muitas vezes nessa tradição, que a própria Carta Constitucional veio a incorporar, com pragmatismo e inteligência, no Acto Adicional de 1852. E se considerarmos a intelectualidade, encontramos as repercussões do iluminismo pombalino a prosseguir no nacionalismo liberal e romântico de Garrett e Herculano, no republicanismo social da Geração de 70 e das Conferências do Casino Lisbonense (sob o magistério de Antero de Quental) e nos sinais de modernidade, de vários sentidos, da Renascença Portuguesa – desde Teixeira de Pascoaes e dos exilados do 31 de Janeiro, seguidores de Sampaio Bruno, aos futuros democratas seareiros (Cortesão, Proença e Sérgio), passando pela audácia futurista de Fernando Pessoa e do “Orpheu”.
TUDO O QUE SEMPRE QUEREMOS SABER…
No pequeno livro de Luís Salgado de Matos, muito bem elaborado, publicado por ocasião do centenário da República de 1910, com o rigor e a serenidade a que nos tem habituado e que sempre se exigem na abordagem de um tema como o da actualidade do republicanismo, o autor considera que a Primeira República não durou por fragilidades próprias, mas nunca pelo facto de ser República. De facto, só tarde «começou a interiorizar a importância da disciplina parlamentar» e a perceber «a importância do facto maioritário, tanto no país como nas urnas». Por outro lado, nunca compreendeu a necessidade do sufrágio universal nem do Estado social. E o certo é que LSM, como profundo conhecedor das relações entre ordens e instituições, considera, e bem, que «a Primeira Guerra Mundial libertou zonas ocultas de violência e forçou reestruturações em Portugal», reforçando as ordens à custa das instituições. A hesitação entre a concepção da «República para os republicanos» de Afonso Costa e a «República para todos os portugueses» de António José de Almeida revelou-se fatal. A exclusão prevaleceu, o que impediu a integração plena da classe operária e dos camponeses e meios rurais na República, conduzindo à perpetuação da questão do regime. Apesar dos primeiros sinais de disciplina financeira (com os Orçamentos superavitários de Afonso Costa), a verdade é que a modernização do país tornou-se impossível pelo efeito da Guerra, sendo a reforma administrativa insuficiente. De facto, a Guerra teve consequências dramáticas, abalou as classes médias, suscitou a descrença e o descrédito. As três grandes questões (a do regime, a religiosa e a social) só foram agravadas. As duas primeiras não foram resolvidas e a última foi potenciada pelo regresso da crise financeira que precipitara o fim da monarquia constitucional. Por outro lado, as Forças Armada «deixaram de confiar nos políticos» e a Igreja Católica «fez apenas meia adesão ao regime, apesar da tendência para o «ralliement», defendida por Bento XV e Pio XI. De facto, o extremismo laicista não permitiu a normalização necessária e possível (que podemos entender melhor, conhecendo a acção de António Lino Neto à frente do Centro Católico).
O QUE FICOU DA REPÚBLICA?
Luís Filipe Salgado de Matos diz que o que ficou da Primeira República foi acima de tudo a República, como possibilidade de auto-governo dos portugueses. O liberalismo monárquico tentou mudar o País, a partir do Estado, enquanto os republicanos de 1910 procuraram (sem êxito) transformar as Forças Armadas e a Igreja Católica, à sua imagem e semelhança. A instabilidade dos governos, os problemas de ordem pública, o défice do Estado (e a crise monetária, corajosamente contrariada por Álvaro Xavier de Castro), na sequência da Guerra – levaram a que regressasse a descrença que se seguiu ao Ultimato inglês. Mesmo assim, a humilhação de 1890 procurou ser combatida através de uma política de consolidação colonial (que abrangeu o reconhecimento da importância das missões e do Padroado) e da participação de Portugal ao lado dos vencedores em Versalhes. Numa palavra, a República procurou afirmar a «alegria nacionalista», apostando no restabelecimento da confiança dos portugueses em si mesmos. No entanto, a dificuldades acumularam-se. O Estado Novo procurou capitalizar a partir da instabilidade, apontando o caso da Primeira República como um «contra-exemplo». Tudo isto, apesar de Salazar ter reconhecido (em 1966) que a República «trouxe consigo um sopro de vida nova ao País, cansado e descrente».
Guilherme d’Oliveira Martins
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