A VIDA DOS LIVROS
de 4 a 10 de Outubro de 2010
Na semana do centenário da República, escolhemos “Ideias Perigosas para Portugal – Propostas que se arriscam a salvar o País” coordenado por João Caraça e Gustavo Cardoso (Tinta da China, 2010). Como não recordar a ideia perigosa: “vamos educar o povo”? Ou a de ser independente, e livre, ou a de interpretar diferentemente os textos sagrados? É um desafio a sessenta personalidades para dizerem, com toda a liberdade, o que se pode fazer por Portugal, correndo perigos e riscos, de modo, entendendo o passado, a actualidade e o futuro. E esse entendimento pressupõe inconformismo e ínfimo constrangimento. Até porque as ideias só podem dar frutos se fizerem mexer, se forem imbuídas de movimento, ou seja, se forem perigosas.
MAS O QUE SÃO IDEIAS PERIGOSAS?
Está demonstrado que as ideias são por natureza perigosas. Antero de Quental lembrou-o a Castilho na célebre polémica do bom senso e do bom gosto, e ainda há pouco a editora Tinta da China reeditou uma conferência perigosa, também do poeta de S. Miguel, sobre as causas da decadência dos povos peninsulares. Para João Caraça: “uma ideia é perigosa quando há percepção de que essa ideia, se posta em circulação, vai causar uma alteração da ordem, que a ordem existente não pode conter. Naturalmente, esta percepção tem que ver com o espaço e com o tempo, com a dimensão das populações, com a distância, com os meios de comunicação e com o momento, a circunstancia, o que faz com que algumas pessoas possam estar, numa dada época, mais predispostas para um certo número de coisas do que noutra”. Com efeito, a perigosidade está ligada à capacidade de mudar, mesmo que tal conduza apenas a repensar ou a desconstruir. Pode acontecer que as ideias nem sejam imediatamente aproveitáveis, mas, como dizia um amigo meu, se alguém tiver várias ideias e eu só puder aproveitar uma, então todos já estamos a ganhar. Este livro é, por isso, indispensável, e merece ser lido com atenção. Na capa, um galo de Barcelos pensa numa bomba pronta a rebentar. O absurdo e o paradoxo funcionam com detonadores. “A perigosidade é tanto maior quanto maior for a atractividade da ideia, mas também quanto maior for o poder contra o qual a ideia se levanta” – insiste João Caraça, na entrevista a Ana Sousa Dias que abre o livro. Para Gustavo Cardoso, “uma ideia perigosa é aquela que coloca em causa o conforto, a forma como dominamos a realidade. Enquanto sociedade, procuramos a estabilidade, as rotinas, como forma de sobrevivência na busca de equilíbrios entre os recursos, nós e o espaço. No entanto, quando essa estabilidade é posta em causa, a mudança só pode ser atingida através de ideias diferentes ou, se quisermos, perigosas. Uma ideia perigosa é uma ideia que nos leva para territórios desconhecidos, onde só podemos antecipar resultados e não ter certezas. Uma ideia perigosa é aquela que encerra a expectativa de mudança, mas não a sua inevitabilidade. De qualquer modo, creio que uma ideia é perigosa porque encerra em si a possibilidade de mudar de mãos um qualquer poder, seja ele material ou conceptual”. A capacidade de limitar o poder é a força de uma ideia perigosa.
MUITOS TEMAS, DIVERSAS PISTAS
O primeiro dilema do livro liga o público e o privado. Mas não é o Estado e o particular que se opõem. Os espaços públicos têm de ser espaços de cidadãos. Miguel Sousa Lobo propõe que estejamos fora de moda, em vez de seguir receitas ou tendências repetidas e acríticas. Catarina Portas fala de “avançar às arrecuas” – o nosso atraso pode ser o nosso avanço, urge não desperdiçar o que recebemos. “Abaixo a queixa!”, urge concretizar, diz Ana Margarida Passos. E se o dinheiro deixasse de ser o critério fundamental? José Miguel Rodrigues põe esse problema muito antigo. Michael Krause fala de combinar paixão e razão económica. Afinal, como ter agilidade para criar? Nelson Olim propõe que socorramos o “outro”, com método e sem amadorismo. E Luís Soares afirma, preto no branco, que os média são a escola, havendo que mergulhar na realidade, tentando evitar o perigo da irrelevância. A ideia de serviço público, por seu turno, obriga a que a resolução dos problemas sociais não seja exclusivo do sector público ou do terceiro sector (eis a preocupação de Susana Murteira). E o valor dos fracassos? E os concursos internacionais? Depois, temos um segundo dilema: mais governo ou mais anarquia? Jorge Luís Borges, porque foi educado na Suiça, costumava dizer que mereceríamos não ter governos. Nuno Mota Pinto fala-nos, oportunamente, no Orçamento de Base Zero, o que exige um trabalho difícil de convergência. Ana Catarina Santos leva a sério a proposta de Borges. João M. Almeida propõe menos representação, mais participação e mais atenção à legitimidade do exercício. Miguel Fontes defende o voto aos 16 anos de idade. David Xavier defende o “lugar aos novos” na primeira magistratura da nação. Luís Palmeirim sugere a redução de cinquenta por cento dos funcionários públicos. E se o poder fosse examinado? – advoga João Pedro Góis. Luís de Sousa propõe vouchers para financiamento partidário. “Federar a Europa, para ter Portugal” – a ideia é de Diogo Pinto. E o voto não deveria ser obrigatório? – é Marta Rebelo a propô-lo. Um terceiro grupo de questões tem a ver com “Mais Eu ou mais Nós?”. Alexandre Herculano, cujo segundo centenário celebramos, polemizou sobre isso com os jovens da Geração de 70. José Mourinho ocupa Gustavo Cardoso. Francisco Maria Balsemão põe o dedo na ferida da gestão do tempo em nome da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Isabel Xavier Canning está apreensiva com a incapacidade de ouvir ideias (como a de transformar o país em algo socialmente funcional, com igualdade de oportunidades e deveres). António Vigário liga privacidade e sociedade aberta. Nuno David descrê de políticos que não saibam dançar. Miguel Freitas fala da demografia e da falta de pessoas e de talentos. Eugénio Teófilo ironiza sobre o casamento. Inês Botelho propõe-se levar as pessoas a dar atenção à igualdade pai / mãe, aos bairros clandestinos, à consciência ecológica urbana. Sandra Mateus fala da “turistificação” nas zonas degradadas. João Afonso proclama que todos somos gregos, da Grécia Antiga. Thiago Seixas Themudo leva-nos a reler os clássicos. Vem depois a sacramental pergunta queirosiana: “Mais Cidades ou mais Serras?”. Não, não são Jacinto e Zé Fernandes que encontramos, mas, entre outros, Pedro Russo (a propor centros de qualidade fora dos centros urbanos), Susana Fonseca e Vera Rainho (em prol da redução da pegada ecológica), José Miguel Urbano (defendendo Grandes Escolas), Sónia Baptista (a dizer que é preciso imaginar para respirar) ou Helder Maiato (em nome da mudança de capital). Por fim, está em causa “Mais Crença ou Mais Razão?”. Nuno Artur Silva pede mais ficção e mais mitografia (como Bernardo Rodrigues). Rui Tavares propõe uma nova Universidade (pequena, aberta, flexível). Daniela Santiago defende a credibilidade informativa em vez da falsa objectividade. Yasser Omar desfralda a bandeira da literacia. Mónica Bettencourt Dias defende o interessante Provedor da Racionalidade.
UMA IDEIA FORTE
Ao longo do livro, encontramos ideias fortes e fracas, numa preocupação geral de procurar contrariar o que subsiste de conformista e de estático. Percebemos que muitas vezes temos razão antes de tempo, ou até fora de tempo. Importa, por isso, usar as ideias, para que elas ganhem a eficácia oportuna. O passado, o presente e o futuro estão em diálogo permanente, uma vez que é na relação com o tempo que tudo se opera ou desfalece. “O estado de repouso no universo é o movimento”. João Caraça recorda esta frase, “banal e contraditória à primeira vista”. De facto, mistura “o estar parado com o estar a andar”. Mas acrescenta que “esta afirmação, na sua acepção mais rigorosa – isto é, de que na ausência de qualquer força um corpo é eternamente animado, por um movimento uniforme e rectilíneo -, é uma das ideias mais revolucionárias da história do pensamento humano sobre a natureza. É uma das bases da física moderna, e numa forma ligeiramente diferente, mais generalizada, designa-se por ‘princípio da relatividade de Galileu’. Foi este grande homem de ciência que primeiro o definiu claramente”. Afinal, deixa de ser preciso explicar a origem do movimento. Galilieu Galilei, se pudesse, seria decerto chamado a fazer o exercício de pensar ideias perigosas… E deixem-me que recorde, a finalizar, o meu saudoso amigo Fernando Gil, que gostava de ideias perigosas, quando me lembrava que nas escadas rolantes do metro, está definida uma atitude que merece atenção – mantenha-se à direita, caminhe pela esquerda. O Miguel Fontes dizia-me que aí está todo um tratado. Pomo-nos a pensar e percebemos que as ideias geram sempre dúvidas e perplexidades… Por isso, são perigosas.
Guilherme d’Oliveira Martins
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