A morte de Vítor Aguiar e Silva é uma perda para as culturas da língua portuguesa. Professor, investigador e ensaísta, renovou de um modo muito rico o conhecimento de Camões, permitindo uma visão abrangente da literatura portuguesa. Publicamos a recensão que fizemos de “Colheita de Inverno” e um breve currículo.
O Centro Nacional de Cultura homenageia a memória do mestre e envia sentidas condolências à família e amigos.
“COLHEITA DE INVERNO” DE VÍTOR AGUIAR E SILVA |
A obra (Almedina, 2020) reúne Ensaios de Teoria e Crítica Literárias da maior importância, não só pela diversidade de temas, mas também pela grande qualidade dos textos, pelo sentido pedagógico e pela importância científica.
APETECÍVEL VOLUME DE ENSAIOS
Quando recebi este apetecível volume de ensaios, disse ao autor que se tratava de uma verdadeira colheita de Primavera, pela diversidade de temas, fecundidade do respetivo tratamento e pistas tão estimulantes apresentadas. É evidente que a melhor garantia estava no autor, e em tudo quanto nos tem dado, mas é sempre bom podemos verificar como as literaturas da língua portuguesa oferecem extraordinários elementos para conhecermos o melhor que a cultura nos reserva. Sente-se a “humanitas” dos clássicos na presença dessas referências perenes. No livro, encontramos três suculentas partes – Ensaios de Teoria Literária, Ensaios Camonianos e Ensaios sobre Literatura Portuguesa. Em regra, quando temos em mãos uma reunião de textos de proveniência vária podemos temer que reencontremos o que já conhecemos e que reafirma mais do que renova. Não é isso que ocorre com Vítor Aguiar e Silva e em particular com esta obra – e o conjunto permite um saudável efeito de novidade, e devo dizer que neste caso, estamos perante um livro fundamental para quem queira compreender a atualidade e a força da língua portuguesa, na sua diversidade e no seu potencial criativa e artístico. Afinal, reunidos os textos de diversas proveniências, a sua complementaridade fá-los ganhar uma vida que permite olhar sob uma luz resplandecente a vitalidade da criação cultural. Voltando a jogar com estações do ano, leia-se e releia-se “Primavera e Inverno da Filologia Românica”. Aí se explica como se chegou à má imagem da filologia, confundida com saber de antiquários e de eruditos fora do mundo, com reservas contaminadas ideologicamente. Vão longe a ideia de “scienza nuova” de Giambattista Vico a partir das criações humanas, linguagem, poesia, mito, até à religião e ao direito, e a clarificação de Carolina Michaëlis de Vasconcelos sobre a filologia da palavra, da língua e da literatura. Houve um longo caminho, mas a hermenêutica dos textos precisa dos fundamentos filológicos. Daí o autor falar da necessidade de uma filologia pós-imperial, capaz de entender os efeitos do seu banimento, devendo articular-se com a linguística, a hermenêutica, a teoria da literatura e literatura comparada… Afinal, temos sempre de entender o que permanece e o que muda – e a realidade histórica depende sempre do entendimento das duas perspetivas. Lembramo-nos da querela dos Antigos e dos Modernos, e o autor recorda-nos a metáfora usada por Jonathan Swift, ele mesmo defensor ativo dos Antigos. Abelhas e aranhas confrontam-se na “Batalha dos Livros” (1704), as abelhas representam o labor interminável dos poetas enquanto as aranhas, reclusas de si mesmas, não têm memória e constroem a sua astuciosa e letal teia. Estaria em causa o perigo da amnésia total da tradição, na arte como na ciência, que nos condenaria ao silêncio. No entanto, a rutura com a tradição e a absoluta originalidade das Vanguardas são mitos desmentidos pela própria dinâmica da literatura, que levou Fernando Pessoa a escrever que em qualquer poema deverá haver “qualquer coisa por onde se nota que existiu Homero”. Culturalmente, jamais existirá originalidade pura. Pelo que a fábula das abelhas e das aranhas é uma simplificação sem correspondência com a realidade humana…
METÁFORAS E ALEGORIAS
Mas a verdade é que “a metáfora não pode deixar de ser lida e interpretada como metáfora, ao passo que a alegoria pode ser lida não alegoricamente”. E ao longo dos diferentes ensaios, vamos encontrando a preocupação de entender, como afirmou Octavio Paz, que “o mundo começa por ser um conjunto de palavras. Mais exatamente: o mundo é um mundo de nomes. Se nos tiram os nomes, retira-nos o nosso mundo”. Mas o mundo em que se move Fernando Pessoa é irremediavelmente “sem centro e sem horizonte, com múltiplas verdades, com deuses diversos e contraditórios, desesperadamente vazio”. Contudo, Aguiar e Silva lembra em Romarigães com Aquilino, a terra fecundada pelas chuvas e pelo sol, por entre a alegria dos trabalhadores minhotos. E Ruy Belo invoca o requiem por Portugal, que depois de Camões se tornou um tema recorrente – “as lágrimas da elegia orvalham piedosa e melancolicamente essa interrogação, mesmo quando a utopia e o messianismo parecem incendiá-la”. David Mourão-Ferreira faz da crítica literária “um exercício de amor e um espaço de dialógica compreensão e admiração que nunca as diferenças ideológico-políticas vieram a turvar ou perturbar”. Manuel Alegre é lembrado na expressão reflexiva e meditativa. Albano Martins, Francisco d’Eulália, António José Saraiva ou Vasco Graça Moura ajudam-nos no caminho da compreensão das culturas da língua portuguesa, como marcas de emancipação e de vitalidade. Na busca de um cânone literário para a língua portuguesa, podemos encontrar a génese do termo “clássico”, como relacionado com as classes das escolas, passando a designar o autor lido e estudado nas classes das instituições de ensino, por ser excelente e modelar. E o cânone ganha o significado característico que David Ruhnken atribuiu à palavra, universalizando-a, como conjunto de textos ou de escritores selecionados pela sua qualidade e prestígio duradouro e exemplaridade linguística e literária. E, em falando de cultura, a tradição é um património com continuidades e descontinuidades, que vai sendo confirmado, alterado, redescoberto e reinventado: “cada presente histórico reconstrói um passado literário que justifica e legitima este presente”. Daí que “não se deva impor uma norma exclusiva e excludente” – o cânon literário terá “como destinatários ideais os alunos do ensino secundário”, devendo “ser elaborado por uma instituição como o Instituto Internacional de Língua Portuguesa, a partir de proposta de entidades nacionais escolhidas para o efeito pelo Ministério da Educação de cada país da CPLP e será plasmado em antologias, contendo adequada informação linguística, histórico-literária e comparatista, que concedam representação maioritária aos autores do país a que especificamente se destinem como livro escolar e que deem representação equitativa aos autores dos outros países”. Na cronologia das literaturas africanas pós-coloniais deverá considerar-se os séculos XX e XXI, sem esquecer os autores portugueses e brasileiros do século XIX que foram, e são mestres da língua, como Eça de Queiroz e Machado de Assis, além de Camões e Vieira a quem o idioma comum deve tanto da constituição e irradiação do seu património. Longe de paternalismos ou preconceitos, importa lembrar Celso Cunha, que fala de uma “unidade superior da língua portuguesa”, dentro da sua diversidade que nos cabe preservar…
NOTAS BIOGRÁFICAS
Professor da UMinho desde 1989, Vítor Aguiar e Silva foi professor catedrático do Instituto de Letras e Ciências Humanas, fundou e dirigiu o Centro de Estudos Humanísticos e a revista Diacrítica.
Adicionalmente, desempenhou as funções de vice-reitor da UMinho, de junho de 1990 a julho de 2002, quando se aposentou.
O ensaísta recebeu vários prémios, entre os quais o Prémio Vergílio Ferreira de 2002, atribuído pela Universidade de Évora, o Prémio Vida Literária, em 2007, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores e pela Caixa Geral de Depósitos, o Prémio Vasco Graça Moura de Cidadania Cultural, em 2018, e o Prémio Camões, em 2020.
Em 05 de outubro de 2004, foi agraciado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública.
in Renascença | 12 de setembro de 2022