À memória de António Candido. Para Celso Lafer.
DAS RAÍZES À DIVERSIDADE
Quando lemos as sucessivas edições de “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda, desde 1936 até 1969, percebemos que a reflexão que lhe está subjacente considera uma significativa complexidade e a coexistência de fatores que são contraditórios. A razão de ser da dificuldade funda-se na extensão do território, na diversidade dos povos que foram constituindo o extraordinário país e na coexistência de influências históricas e políticas diferentes. De facto, torna-se difícil entender como foi possível construir uma tão ampla fronteira, delineada não do modo tradicional das conquistas imperiais, mas a partir de uma articulação de movimentos diversos e simultâneos centrífugos e centrípetos. Olhe-se o mapa da Península Ibérica e faça-se a comparação com o da América do Sul. Na Europa, o retângulo ocidental português tem uma fronteira estável desde o século XIII, como verdadeira exceção no velho continente, com uma língua sem dialetos, construída de norte para sul e de sul para norte, nascida na Galiza, fora do território português, mas projetada globalmente; enquanto o reino de Espanha tem várias autonomias que correspondem a uma acentuada diversidade política e cultural. Já no Atlântico Sul, a grandiosa unidade política e linguística brasileira contrasta com a multiplicidade de estados de influência hispânica. Esta diferença corresponde também à especificidade que levou à independência brasileira através de um processo gradual, que exige a compreensão e o estudo como um fenómeno apenas compreensível pela coexistência de múltiplos fatores com uma tendência convergente.
Basta lembrar que estamos perante o caso singular de uma colónia emancipada, sobretudo depois das guerras napoleónicas, tornando-se cabeça de um Estado europeu, quando a capital e a Corte se fixaram no Rio de Janeiro, os portos brasileiros se abriram ao comércio internacional (ao invés do tradicional pacto colonial) e se instituiu o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815). Assim se pode explicar a dificuldade em encontrar uma chave única para a análise sobre a dominação e a emancipação e sobre os seus protagonistas. De facto, as explicações simplistas tendem a ser erróneas. A tensão entre o modelo jesuítico das reduções e o modelo expansionista dos bandeirantes paulistas constitui, na sua heterogeneidade, motivo para uma reflexão séria sobre a persistência da síntese da unidade territorial, apesar da profunda diferenciação de fatores relevantes. Sérgio Buarque de Holanda foi, assim, alterando a sua perspetiva nas “Raízes do Brasil” e é curioso ver, como hoje também a interpretação de Gilberto Freyre, em “Casa Grande e Senzala” voltou a ser motivo de interesse para a compreensão das diferenças brasileiras relativamente a outros casos da colonização americana. E a própria noção de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda merece uma nova leitura, na herança cultural da colonização portuguesa. A verdade é que, como o tempo demonstrou, nada ou muito pouco havia de genético nessa análise. Existia, sim, sentido crítico, que nunca deixou de ser salientado, considerando que o atraso económico seria consequência dessa sobreposição do afeto e da racionalidade com consequências na difícil distinção entre público e privado ou entre eficiência e emancipação. Contudo, a capacidade de adaptação dos diferentes povos em presença à diversidade das culturas e do território foi permitindo a compreensão de uma progressiva abertura à legitimidade democrática, apesar das dificuldades e resistências.
ENTENDER AS DIFERENÇAS
A compreensão do Brasil obriga a entender as diferenças. Há uma realidade brasileira que nos apaixona e gera perplexidades. Eis porque temos de fazer um esforço para conhecer melhor essa realidade heterogénea, que os meus amigos António Alçada Baptista e Eduardo Lourenço consideravam essencial até para perceber Portugal. Assim, também a leitura crítica de “Formação do Brasil Contemporâneo” (1942) de Caio Prado, Jr. se revela útil, em especial quanto à emancipação social, à valorização do mercado interno e aos desafios da coesão económica. Não esqueçamos, porém, que será Celso Furtado a abrir as portas para uma noção dinâmica e positiva de desenvolvimento social e económico, de modo a superar o facto de os países subdesenvolvidos terem tido um processo de industrialização indireto, tornando-os dependentes dos países industrializados. Importaria pôr em xeque essa dependência, criando condições para um planeamento estratégico no espaço público, capaz de garantir o caráter reprodutivo do investimento, de assegurar uma partilha justa de recursos, com limitação do consumo debilitador… Estas considerações levam-nos à necessidade de entender o Brasil como uma realidade sócio-cultural e política de caráter múltiplo, com todas as fragilidades inerentes a essa natureza – como é visível na conjuntura presente.
Todas as referências que acabamos de fazer demonstram que a diferença e a heterogeneidade de um território tão amplo e vocacionado necessariamente a ser influente obrigam à consideração de uma economia assente no desenvolvimento humano, na sustentabilidade ambiental, na democracia baseada na cidadania ativa, na justiça e na partilha de responsabilidades. E António Cândido em “Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos” fala-nos da essencial dimensão cultural e de um caminho de autoconsciência pela literatura, a começar “numa imaturidade, por vezes provinciana”, que “deu à literatura sentido histórico e excecional poder comunicativo, tornando-a língua geral duma sociedade em busca de autoconhecimento. Sempre que se particularizou, como manifestação afetiva e descrição local, adquiriu, para nós (brasileiros), a expressividade que estabelece comunicação entre autores e leitores, sem a qual a arte não passa de experimentação dos recursos técnicos”. Há um encontro das forças universais e nacionais, técnicas e emocionais, numa “permanente mistura da tradição europeia e das descobertas do Brasil. Mistura do artesão neoclássico ao bardo romântico, duma arte de clareza e discernimento a uma ‘metafísica de confusão’”. É verdade que “no Brasil sempre houve a produção de textos importantes, desde Anchieta no século XVI, mas só a partir do século XVIII, a literatura passou a ser uma instituição da sociedade, não simples ocorrência de textos, por mais importantes que fossem, como são de facto, por exemplo, no século XVII os de Gregório de Matos (inéditos até ao século XIX) e do Padre António Vieira; ou o de Rocha Pita na primeira metade do século XVIII”. Dois séculos de independência brasileira obrigam-nos a ver muito para além do gesto político de 1822. Há um caminho que prossegue e nos obriga a compreender o Brasil, das raízes às diferenças.
Guilherme d’Oliveira Martins