Meu Caro Amigo Agostinho de Morais
Muito hesitei em pegar na pena, para lhe dirigir breves palavras, depois de terminado este desfortunado folhetim. Começo por me abster de comentários, uma vez que sabe, melhor que ninguém, como me importuna e incomoda esta constante chamada de atenção ao facto de eu continuar vivo, para mal dos meus pecados. Não confirmo nem desminto. Mantenho-me. Mas peço encarecidamente que me deixem em paz. Não tomei nenhum elixir, não sei que tem este meu genoma, apenas sei que um protagonista romanesco não está condicionado pelas leis da existência humana. Por isso aqui estou. Agora sou acusado de um crime. É verdade que é benigno, mas desejo que esclareçam os leitores, de uma vez por todas, que não matei ninguém. A condessa de W. equivocou-se ao misturar o enredo do Mistério com o epílogo deste folhetim. Ainda hoje não sei o que aconteceu na Estrada de Sintra. Sei, sim, que neste folhetim de folhetins, juntando variados espíritos e sombras, o que estava em causa era a ameaça relativamente à vida e permanência da Lusitana Língua. Daí o encontro de tantos intervenientes. E se não foi chamado à colação Luís de Camões é porque ele continuará a ser um garante dessa vitalidade, como o Padre Vieira. Eles são exceção!
O senhor Jaime Ramos interrogou Com a ajuda do meu ilustre amigo, os diferentes suspeitos: todos por igual fantasmas: Justino Antunes, Conselheiro Torres, Coronel Segismundo, Conselheiro Acácio, Luísa do “Primo Basílio”, o inefável Pacheco, Zé Povinho, Joãozinho das Perdizes, o Bispo de Viseu, Calisto Elói de Barbuda, Corto Maltese, Sandokan, Gastão de Sequeira, Fernão Mendes Pinto, António José da Silva, o Vaqueiro do Auto da Visitação, Frei Dinis, Carlos e Joaninha, o conde de Abranhos, Camilo Castelo Branco, Antunes e Judite, Jaime Ramos, Luísa, a condessa de W., Garrett (ele mesmo) com Duarte Guedes, Amália, Josefina e José Félix, D. Raymundo de Barbela, o cavaleiro e a bela Madeleine, Pessoa como Hamlet, e (à ultima da hora) Quina e Germa. Duas horas de interrogatório. O senhor Ramos foi sistemático e concordei com ele.
De facto, a Lusitana Língua existe graças a um povo, a uma grei, que de modo determinado continua a exprimir-se, a escrever, a comunicar, a tornar viva uma identidade nobre. Por isso, neste momento, apenas tenho a recordar que sempre que venho a Portugal cumpre-me «retemperar a fibra» percorrendo a província, lentamente, a cavalo, com demoras em vilas decaídas, que me encantam, com infindáveis cavaqueiras á lareira, fraternizações nos adros e nas tavernas, idas a festivas a romarias em carro de bois, vetusto e venerável, toldado de chita, enfeitado de folhas de louro. A minha região preferida é o Ribatejo, a terra chã da lezíria e do boi. Aí, de jaleca e cinta, montado num potro, com a vara de campino erguida, correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da manhã, sinto, mais que em nenhuma outra parte, a delícia de viver. Esse sou eu. «Com três fortes retoques (escrevi em 1881, do Hotel Braganza), com arvoredo e pinheiros mansos plantados nas colinas calvas da Outra-Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do casario; com uma varredela definitiva por essas benditas ruas, Lisboa seria uma d’essas belezas da Natureza criadas pelo Homem, que se tornam um motivo de sonho, de arte e de peregrinação. Mas uma existência enraizada em Lisboa não me parece tolerável. Falta aqui uma atmosfera intelectual onde a alma respire. Depois certas feições dominam. Lisboa é uma cidade aliteratada, afadistada, catita e conselheiral. Há literatice na simples maneira com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas próprias graças com que uma senhora recebe, transparece fadistice: mesmo na Arte há conselheirismo; e há catitismo mesmo nos cemitérios. Mas a náusea suprema, meu amigo, vem da politiquice e dos politiquetes».
Peço, assim, encarecidamente, que me deixem na paz que mereço (como o magistral Trinca-Fortes). E que abandonem a ilusão de me procurar por toda a parte. Encontrar-me-ão, é certo. Mas gostaria de me manter tão só nas minhas páginas, tanto quanto possível. A minha vida é isso mesmo. Em mim não há literatice, nem fadistice, nem conselheirismo, nem catitismo. Sou eu, apenas Fradique, na plenitude de minhas virtudes! Aceite, pois, um grato e sincero abraço do
Carlos Fradique Mendes