A VIDA DOS LIVROS
De 16 a 22 de Agosto de 2010
«Os Dias de Portugal – Discursos de João Bénard da Costa» (Presidência da República, 2010) é um livro para ler, meditar e guardar. A obra inicia-se com uma belíssima fotografia da autoria de Luís Filipe Catarino, datada de Janeiro de 2005, tirada em Mântua, que marca a mensagem fundamental do autor, que falando de Portugal e dos portugueses, trá-los dos confins do mundo culto para os tornar ainda mais interessantes, do que à primeira vista podem parecer…
UM LIVRO ESCRITO E DITO COM TALENTO
Este livro guardo-o no santo dos santos da minha biblioteca, e conto regressar a ele, para me deleitar com a escrita, as ideias, a sabedoria e a recordação de um amigo que deixou muitas saudades. Em boa hora, António Barreto promoveu, no âmbito das comemorações do Dia de Portugal, a publicação das intervenções de João Bénard da Costa (JBC) nas celebrações nacionais, enquanto teve a respectiva coordenação, de 1998 a 2008 – «Os Dias de Portugal – Discursos de JBC» (Presidência da República, 2010). A obra inicia-se com uma belíssima fotografia, com forte magnetismo, da autoria de Luís Filipe Catarino, datada de Janeiro de 2005 e tirada em Mântua. A cidade renascentista estava imersa em frios e nevoeiros, e sente-se isso nesse instantâneo, em que João Bénard lê de pé, parecendo absorto, rodeado de colunas intemporais e de espíritos, acolhedores e amenos. É ele que está ali – e conhecendo as outras fotografias (de um grande fotógrafo) fico fascinado porque sinto o entusiasta da arte e dos símbolos. É mesmo um sábio “cicerone de almas” (para usar a feliz expressão de A. Barreto). JBC lê um guia de Mântua, o melhor dos companheiros para um insaciável viajante, em busca do pequeno pormenor que a todos escapa. E neste caso os peregrinos deixaram-se enfeitiçar por Sabbioneta, a vila fortificada que evoca a cidade ideal, começada em 1558 e concebida por Vespasiano de Gonzaga, general de Filipe II de Espanha (que viria a ser o nosso Filipe I).
O TEMA DAS HUMANIDADES
João Bénard da Costa referiu com especial ênfase em Viana do Castelo (2008) o tema da defesa das Humanidades, lembrando que de pouco nos aproveitarão os novos rumos do progresso científico e técnico se estes corresponderem ao «esquecimento da nossa História – História Universal e História de Portugal – da nossa memória e da nossa língua, língua a que Heidegger chamou Casa do Ser». Afinal, «sem memória, o mais inteligente dos homens nada é porque com nada se identifica». Há, deste modo, uma constante nas palavras do escritor que busca nas suas reflexões temas que tenham a ver com o longo prazo, com as tendências duráveis de uma identidade antiga e permanente, relativamente à qual faz sentido recordar Georges Bernanos a dizer no seu discurso além-túmulo: «il faut temoigner pour ce qui dure contre ce qui fait semblant de durer». E as palavras destes discursos ilustram bem esta difícil preocupação. Antes de mais, há o caso único de um país que celebra o seu dia nacional, invocando um poeta, desaparecido (ao que se supõe) no ano mesmo em que passámos a integrar uma união pessoal com a Espanha. Depois, há a legítima interrogação sobre sermos um país de poetas – com M.S. Lourenço a pôr dúvidas legítimas sobre esse entendimento, em que o século XX é uma evidente excepção. Mas JBC, com suma inteligência, reflecte, faz ver, leva a pensar e festeja Sophia, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena e Agustina, mas também Júlio Diniz e Camilo, sem esquecer Bocage, naturalmente Camões e Pessoa.
ROTEIRO MÁGICO
O roteiro mágico das cidades permite percebermos a diversidade deste Portugal que Orlando Ribeiro designava como continente em miniatura. Em Lisboa (1998), capital «de um país liberto / de uma vida limpa / e de um tempo justo» (Sophia), no ano da Expo e dos Oceanos, surge o apelo a que o País descubra a memória. Aveiro (1999), cidade do futuro, com uma história que se intensifica, diz-nos que «é tempo de fazermos coincidir o nosso projecto com a nossa cultura». Viseu (2000) leva à recordação das raízes familiares de Simão Botelho do camiliano «Amor de Perdição», mas permite que JBC desfaça o mito negativo do Velho do Restelo. Afinal, o velho é a voz das dúvidas e do receio. «Em certo sentido, é o contrário do arquétipo em que o tornámos e as suas palavras podem ser legitimamente aproximadas dos sábios conselhos que Sá de Miranda dirigiu ou a El-Rei D. João III ou ao Senhor de Basto, nas famosas cartas em verso em que a um e outro advertiu contra poderosos inimigos que eles não curavam de ver. O Velho do Restelo, como Sá de Miranda, fugiu às ideias do seu tempo, fugiu ao entendimento consensual ou fugiu ao que entendiam aqueles que mais respeitavam o tempo do que o estilo, como Sá de Miranda acusou num verso célebre». Filosofando, João Bénard lembra que o próprio Camões pôs em si as qualidades que viu no ancião das praias do Restelo («nem me falta na vida honesto estudo / com longa experiência misturado / nem engenho, que aqui vereis presente, / cousas que juntas se acham raramente»). E, de novo, no Porto (2001), Miguel Torga é lembrado orgulhosamente quando diz que a cidade é «a segunda do Portugal Europeu e a primeira do Portugal Peninsular».
CONTRA A CICLOTIMIA
Na cidade de Beja (2002), entre lembranças do misterioso bispo Aprígio, comentador do Apocalipse, do temível Almançor (morto em 1002) e do Lidador Gonçalo Mendes da Maia, fala-se da nossa ciclotimia, a propósito de passarmos da euforia de 1998 à depressão: «Quantas vezes não nos deitamos convictos de que já somos uma província de Espanha e não acordamos na manhã seguinte, proclamando a nossa unicidade face a todas as outras nações da Europa ou mesmo contra elas. Para, no dia seguinte, de novo os sentimentos mudarem com a madrugação ou com a nouta. Portugueses persistentemente pessimistas ou portugueses persistentemente optimistas são espécies raras, sobretudo a segunda». Usando a plasticidade das palavras e das ideias, JBC diz bem da nossa enfermidade – e tempera-a com o fel de Fialho de Almeida e da sua gataria – «miando pouco, arranhando sempre e não temendo nunca»… Bem diferente, em Angra do Heroísmo (2003), lugar de resistência (de D. António e D. Pedro) sentimos o talento fantástico de Vitorino Nemésio a invocar o Espírito Santo (da fraternidade universalista do Portugal paradigmático): «Pomba Te vejo a vulto, / Cego do feixe ledo, / Almo Espírito oculto, / Lúcido ao dia cedo». Mas também lemos em «O Indesejado» (1945), de Jorge de Sena, o melhor hino à liberdade heróica: «porque ser livre é mais que liberdade, / porque é impossível que o não venha a ser». Mas é de Bragança (2004) que ouvimos o brado de um émulo do Velho e de Camões – o Abade de Baçal a invectivar-nos. «Por Deus! Cessemos de dar, perante o estrangeiro, o triste espectáculo de um povo que é incapaz de construir o seu futuro e não aprecia as tradições do seu passado». De novo, a memória, ligada ao labor. E em tempos de crise (quais não são?) é bom ir à cultura como criação, constante destas palavras. Daí lembrar tantas vezes os cães do Nilo de Sá de Miranda: «que correm e vão bebendo», já que «precisamos de correr, mas precisamos por igual de não esquecer as fontes e a água que delas brota». E é na terra do sal, a cidade do injustiçado Bocage, Setúbal (2007) que o Padre António Vieira é lembrado por causa do sal da terra, aqui onde «em muitas partes toma o navio porto à porta do seu dono». Cidade «que tem mais para contar e da qual menos se conta»…
Guilherme d’Oliveira Martins