Deixámos o Museu do Carmo em grande alvoroço pela ocorrência de suspeitos ruídos de vozes humanas, algures em meados do século XX. Houve então brigadas de investigadores empenhadas na descoberta de tão estranhos fenómenos. Mas um dos mais antigos associados da agremiação de Arqueólogos e Arquitetos, contemporâneo e confrade do Justino Antunes, de “Lisboa em Camisa”, recordou os relatos outrora por ele feitos sobre a celebração da Aurora da Liberdade, entrada triunfal das tropas do Rei Soldado em Lisboa, antes de perdida essa memória na noite do esquecimento. Ora, foi a 23 de julho que as vozes começaram a ser ouvidas, na véspera da lembrança gloriosa dos acontecimentos de 1833 – o desembarque do Marechal Duque da Terceira. Justino Antunes, que recordamos representado na pantalha da RTP por Manuel Lereno (1960), superava-se numa evidente melancolia quando recordava o saudoso marido de sua irmã Josefina, o coronel Segismundo, herói com o peito constelado de condecorações, desembarcado na praia do Mindelo e também em Lisboa no sublime 24 de julho. Pois aconteceu que o tão desejado filho de Justino Antunes veio ao mundo nessa data singular. E D. Josefina, mãe extremosa do Arnestozinho, imediatamente alvitrou que o novo sobrinho nascido em tão auspiciosa data haveria de ter o heróico nome de Segismundo. Mas Justino não se deixou demover pela insistência da mana, o que levou a que esta se convencesse que tão estulta teimosia haveria de gerar uma maldição. Cuidando da sua qualidade de zeloso funcionário, preferiu Antunes escolher o prenome do Conselheiro Torres, o qual verdadeiramente não conhecia. Depois de difíceis e inconclusivas diligências diplomáticas (já que timidamente não quis admitir junto do Conselheiro o tal desconhecimento), lá apareceu um nome, por lamentável equívoco, o de Moisés, por entre mil dúvidas e graças à revelação de um merceeiro. O pequeno não seria Tomé, nem Heliodoro, nem Gregório, nem Sebastião, nem mesmo Tibúrcio – mas Moisés, como o destinatário sagrado das tábuas da lei, porque se supunha ser esse o do Conselheiro Torres, o habitante do quarto andar do prédio em frente do de Justino Antunes na Rua dos Fanqueiros. O Conselheiro não se chamava, contudo, Moisés. Essa era uma infeliz alcunha em alusão a um triste e inglório naufrágio, que poderia ter sido fatal. O Conselheiro considerou, porém, um insulto essa designação, pois punha em causa a folha de serviços supostamente exemplar, pela fraqueza de um naufrágio de água doce, reveladora de que não sabia nadar… Esteve então para recusar o apadrinhamento de Moisés, tentou a mudança do nome, mas já nada era possível, pois o assento paroquial estava feito e trancado. Saberemos que o pequeno se libertara do nome de Tibúrcio, que o Conselheiro fazia por esconder o mais possível. Todavia foi a questão do nome e da sua intrincada e desajeitada escolha que geraria o drama em que se viu metido o vetusto Museu do Carmo. No dizer de Josefina (longe de prever o que aconteceria anos mais tarde) a recusa do nome de Segismundo geraria sempre um terrível castigo, pela teimosia injustificável do mano Justino, E voltemos ao Museu. As vozes continuaram e os visitantes debandaram com medo dos gritos. E ficou a certeza de que se tratava mesmo da vingança do velho coronel Segismundo, francamente despeitado. Houve reuniões, conciliabos, consulta de bruxos e bruxas e sob a inspiração serena do espírito etéreo de Justino Antunes (ele passava por lá), tudo se resolveria com uma pequena placa de bronze (hoje por certo no fundo de uma gaveta) em lugar discreto sem especial visibilidade com a inscrição: “Em memória do heróico coronel Segismundo, participante da praia do Mindelo e da Aurora de Liberdade de 24 de julho de 1833, recordação cordial de Justino Antunes e do compadre Conselheiro Torres”. E por fas e por nefas, até hoje não voltaram a ouvir-se no casarão do Carmo os gritos do velho cabo de guerra…
Agostinho de Morais