O que se passou a seguir à saída súbita da surpreendente personalidade queirosiana do restaurante é difícil de explicar. É verdade que corria entre os conhecedores do universo de Eça e dos seus amigos que Carlos Fradique Mendes não morrera. Contudo já praticamente ninguém ligava muito a esse fenómeno. Alguns amigos nossos afirmavam, porém, terem-no visto, a subir ou a descer o Chiado, com ar pensativo no antigo Largo da Abegoaria, à porta do Grémio Literário ou um dia no Turf, mas quando alguém que o conhecia ia procurá-lo já se tinha sumido. Sentado à mesa de um restaurante foi a primeira vez que aconteceu. É verdade que o meu companheiro de refeição foi então à rua a ver se via o caminho que seguia Fradique, mas nada conseguiu. Não havia rasto.
O pior de tudo foi, no entanto, o facto de o meu amigo ter começado a escrever sobre esse acontecimento, num célebre ensaio autobiográfico de Fradique Mendes, no qual eu próprio era referenciado, e que mais tarde veio a dar brado. O que se passou, viria a ser relatado em pormenor nesse surpreendente livro. De facto, a figura até aí para nós simpática de Carlos Fradique Mendes teve uma reação inusitada e tornou-se agressiva e persecutória. A tal ponto o meu interlocutor ficou surpreendido, que se dispôs a relatar em livro o que se foi passando. Vamos por partes. Quando eu passeava pela rua, sentia-me estranhamente seguido por uma presença impercetível à vista desarmada. Sentia os seus passos, mas quando olhava para trás nada via. Cheguei a ver a sua sombra projetada no passeio a meu lado, numa hora mais tardia, mas esse sinal depressa se dissipou. Outra vez, vi-o ao longe no Rossio, mas quando me tentei aproximar desapareceu misteriosamente. Um amigo fez-me chegar uma mensagem ameaçadora. Alguém lhe dissera que me arrependeria se continuasse a correr a informação de que ele continuava vivo, devendo proibir terminantemente o autor da nova autobiografia de Mendes sobre a continuidade dessa empresa. Chegou a haver uma estranha manifestação espontânea a favor de Fradique… Todos os recados e relatos sobre as suas ameaças faziam lembrar, porém, o velho pirata de “O Mistério da Estrada de Sintra”. Não era o autor da correspondência nem o versejador dos “Poemas de Macadame” que aparecia, mas a exasperada figura inventada por Eça e Ramalho no folhetim do “Diário de Notícias”. E assim vivi durante alguns meses sob a pressão dessa reação inusitada e sob essa desagradável omnipresença. E tudo isto devido ao facto de eu e o meu colega do pacato almoço termos reconhecido a presença de Fradique no mundo dos vivos e não apenas na categoria dos espectros. Era insuportável para essa personalidade complexa ver-se identificado – e tudo ele tentou para que fosse esquecido, como se a literatura pudesse sob os efeitos de uma varinha mágica dissipar-se. E se dúvidas houvesse, bastaria a leitura de “O Mandarim” para se compreender os perigos reais que corri nessa circunstância.
O tempo passou. A” Autobiografia de Carlos Fradique Mendes” saiu a lume. As pressões exercidas sobre a minha pessoa foram pormenorizadamente relatadas em letra de forma. E o que aconteceu foi que Fradique de um momento para o outro desvaneceu-se. Desapareceu do meu horizonte. Deixei de sentir essa perseguição obsessiva. Regressei a “O Sancho” com o meu amigo, e nunca mais voltámos a ver Fradique Mendes. A publicação do livro foi uma espécie de exorcismo e o meu interlocutor já não está no mundo dos vivos para contar outros desenvolvimentos deste bizarro episódio…
Agostinho de Morais