A Vida dos Livros

“Os Sermões” do Padre António Vieira

“Os Sermões” do Padre António Vieira são na língua portuguesa o exemplo do momento mais alto atingido na prosa por uma língua moderna.

A VEZ DO PADRE VIEIRA
Depois de termos sido guiados por Francisco de Holanda na jornada romana, é a vez de trazermos à nossa caminhada o Padre António Vieira, encontrado, com especial agrado em diversos recantos desta peregrinação. E cito-o numa carta de cerca de 1670, onde diz com ironia: “Embarquei-me, com esta última, trinta e cinco vezes e sei pouco: que farão os que viram o mar só do Cais da Pedra até Sacavém”. De facto, Vieira teve uma vida viajada e aventurosa, que originou textos “tão diferentes na matéria e lugares em que foram recitados”. Se a missão diplomática de que foi encarregado em 1650 teve como objetivo a paz com a Espanha e a tentativa de casamento de D. Teodósio com a filha de Filipe IV, bem como os projetos relativos aos cristãos-novos, a estada iniciada em agosto de 1669 teve como finalidade as diligências para a canonização do padre Inácio de Azevedo e dos trinta e nove jesuítas assassinados em 1570 por corsários calvinistas quando iam para o Brasil. Tratou-se, porém, de uma missão formalmente modesta (que só viria a ter resultado no século XIX), até porque o regente D. Pedro não concedeu autorização para passagem por Inglaterra em visita a D. Catarina, ficando igualmente prejudicado o encontro em França com o seu amigo Duarte Ribeiro de Macedo. Contudo, nesse ano de 1669 Vieira usa da sua influência e concentra esforços no combate junto da Cúria às práticas do Santo Ofício em Portugal de que o próprio vinha sendo vítima, assim como na defesa dos cristãos-novos e ainda na procura de recursos financeiros para a criação da Companhia Comercial da Índia. Era o tempo em que o Padre João Paulo Oliva desempenhava funções de Superior Geral da Companhia de Jesus e pregador oficial do colégio dos Cardeais. Com a fama trazida pelo português de orador carismático, nasce a ideia de lhe dar encargo de pregador para audiências esmeradas.

OS SERMÕES ITALIANOS
Os primeiros sermões deste período não alcançam, contudo, o sucesso esperado, uma vez que são proferidos em português. O Sermão do Mandato e os alusivos a Santo António ditos em Santo António dos Portugueses são notáveis. “É verdade que Portugal era um cantinho ou um canteirinho da Europa; mas, nesse cantinho da terra pura e mimosa de Deus, quis o céu depositar a fé, que dali se havia de derivar a todas essas vastíssimas terras, introduzida com tanto valor, cultivada com tanto trabalho, regada com tanto sangue, recolhida com tantos suores e metida, finalmente, nos celeiros da Igreja debaixo das chaves de Pedro, com tanta glória”. Mas Vieira sabia também que “luzir português entre portugueses e muito menos luzir com a sua luz, é coisa muito dificultosa na nossa terra”. O pregador circula pela cidade e nós procuramos as suas referências: “Mais gosto de ver em Roma as ruínas e o desengano do que foi a vaidade e variedade do que é, e com isto me parece o mundo mais estreito e a minha cela mais larga”. Só em 1672 na festa de S. Francisco d’Assis o padre prega pela primeira vez em italiano e a fama desde logo se difunde. Na solenidade de S. Estanislau partilha o tratamento do tema com o próprio Padre Oliva, que não esconde a grande admiração pelo português. Confessará Vieira que foi em resultado de muita insistência que cometeu a audácia de usar a língua italiana. Chegarão até nós dez sermões e um discurso em língua italiana, havendo mais onze sermões em português. É o encontro com a Rainha Cristina Alexandra da Suécia (1626-1689) e a participação do orador sagrado nos salões desta que irão torná-lo em Roma um reconhecido e maravilhoso artista, confirmando a grande fama trazida desde onde exercera o seu múnus. Quando passamos pela igreja de Salvatore in Lauro, na via dei Coronari, sentimos a presença da Rainha (que viveu no palácio Farnese) e os ecos do orador sagrado. A rua, inaugurada por Sisto IV (sempre continuamos a encontrá-lo), foi da predileção dos romeiros, que aqui encontravam objetos religiosos, e hoje antiguidades e restaurantes.

A RAINHA CRISTINA DA SUÉCIA
Muito provavelmente foi a audição de um dos sermões num ofício religioso em Salvatore in Lauro que suscitou o convite para que em cinco terças feiras da Quaresma de 1674 pregasse breves reflexões sobre o tema “Conhece-te a ti mesmo”, a propósito das cinco pedras da funda de David – a que acresceu o discurso “Lágrimas de Heráclito”. Neste caso, coube a Vieira participar num jogo citadino que se traduzia num confronto entre o riso e o choro, cabendo ao português defender o choro na perspetiva de Heráclito e a Jerónimo Cattaneo o riso em Demócrito. “Se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional, e o uso da razão, é o pranto” – usando o pregador um subterfúgio pelo qual tornava o choro um meio natural de ligar razão e espírito. Aliás, quanto ao tema do conhecimento, a propósito de David, a primeira pedra de cor branca simbolizaria o conhecimento e a transparência; a segunda, de cor negra, representaria a dor do bem perdido; a terceira, vermelha, cor da vergonha, corresponderia ao “pejo do mal cometido”; a quarta, o temor do castigo futuro, sendo amarela e pálida; e trataria a quinta da esperança do gosto eterno, simbolizada pelo verde, cor da esperança – “spes eterni gaudii”. O verdadeiro conhecimento de David e a sua força provinham do fundo da sua alma. “Levai na memória a pedra do conhecimento próprio, e lembrai-vos que sois almas, e almas mortais: levai a pedra da dor do bem perdido, e doei-vos do pecado: levai a pedra do mal cometido, e envergonhai-vos de Deus e dos homens, e de vós mesmos: levai a pedra do temor do castigo eterno, temei mais que todas as pedras do Inferno, o ódio e as blasfémias contra Deus. Levai finalmente, a pedra da esperança do céu, e vivei como que espera salvar-se, e gozar o sumo bem, sumamente”. Este é o período mais alto do pregador, que conquista plenamente as cortes refinadas do Papa Clemente X e de Cristina da Suécia. É aquele em que Vieira, com a proteção papal e livre do controlo da Inquisição portuguesa, pode retomar a perspetiva profético-religiosa que culminará na “Chave dos Profetas”, cuja originalidade e sentido profundo o tempo tem vindo a revelar. O certo é que, já no regresso do clérigo a Portugal, Cristina da Suécia convidará o Padre António Vieira para seu confessor: “Agora, mais que nunca é V. Reverência desejado de uma senhora que por servir a Cristo não quis reinar…”, segundo o próprio Superior Geral em epístola datada de 12 de setembro de 1680. O orador sagrado recusa, porém, o convite, alegando a idade avançada e as doenças que continuam a fazer-se sentir. Nota-se que há uma preocupação dos amigos de Vieira em Roma no sentido de o libertar dos efeitos das ações nefastas dos adversários, que, de facto, continuarão a fazer-se sentir até ao fim dos seus dias, já na Bahia. O pregador compreende a situação, mas prefere terminar a escrita e a publicação da sua obra, que em parte significativa conseguirá.

Guilherme d’Oliveira Martins

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