«Diz o Povo que o rosto é o espelho da alma. Com os olhos nos olhos entendemo-nos e o carácter demonstra-se na capacidade de nos encararmos frontalmente. Quem foge ao olhar do outro, em boa verdade, foge de si próprio. O outro é, de facto, a nossa natural continuação – a outra metade de nós mesmos. Pelo olhar comunicamos e apercebemo-nos da alegria ou da tristeza, da dúvida ou da certeza, da confiança ou do medo, do pânico ou da indiferença, da atenção ou da dispersão, do conhecimento ou da ignorância, da generosidade ou da ganância, da serenidade ou da perturbação, da violência ou da piedade, do sossego ou do desassossego, da guerra e da paz. E o que é a cultura senão a compreensão da multiplicidade de atitudes, sentimentos e emoções – que o rosto identifica? A razão e o sentimento manifestam-se pela expressão do rosto, mas, como nos ensinou Emmanuel Lévinas, mais de que uma manifestação, do que se trata é da humanidade na responsabilidade para com os outros, que podemos encontrar no diálogo silencioso entre duas pessoas que se encontram através do olhar. A filosofia primeira é uma ética! A palavra grega pessoa, provém de “prosopon”, que significa máscara, ou seja, a identificação pelo rosto da personagem da tragédia helénica. Eis a importância da mais sagrada das marcas do carácter e do “ethos”. O espelho da alma é assim o sinal da dignidade humana. Na pintura, na escultura, nas artes, mas também no canto ou na representação dramática é o rosto a representação da essência da humanidade. Na “Divina Comédia”, no percurso do Inferno, do Purgatório e do Paraíso, Dante é acompanhado pela bela Beatriz Portinari, na visita das nove esferas celestes do Paraíso – Lua, Mercúrio, Vénus, Sol (símbolo da prudência e do bom uso da teologia), Marte (sinal de coragem), Júpiter (símbolo de justiça), Saturno (da contemplação), Estrelas fixas (da Igreja triunfante), – e é na última esfera do universo físico, que antecede o Empíreo, que se dá o encontro com Deus, como descoberta de um rosto, olhos nos olhos. E quando Beatriz deixa Dante com S. Bernardo, para que a teologia comande, Dante confessa: “não é voo para as minhas asas”… Tal como em S. Paulo, a imagem essencial do supremo encontro faz-se, assim, através do diálogo do rosto. Que melhor expressão? Que melhor descoberta?
Guilherme d’Oliveira Martins
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