A língua é uma realidade viva. Não pode estagnar. Se deixa de se actualizar definha e empobrece. Cuidar da língua não pode ser fechá-la sobre si, recusando receber a riqueza própria da renovação, da recriação permanente, do intercâmbio com as novas realidades e as novas culturas. Teixeira de Pascoaes dizia que “a linguagem popular é mais irmã do Verbo divino que a linguagem dos letrados. É a voz do sangue e da terra”. E recordava: “o pego do rio, o boco dos vales, as horas mortas da noite, o nevoeiro da manhã são frases populares, de um misterioso e dramático sentido, e é fácil perceber-lhes a essência da legenda sebastianista”… Mas, para percebermos a linguagem popular, temos de entender o seu sentido sábio e correcto, e não a deturpação. E se o mesmo Pascoaes falava do génio da língua, como “essência espiritual emanada dos seus vocábulos intraduzíveis”, temos de entender esse génio, para além de “saudosos sentimentos”, enquanto culto da compreensão do que somos e do que nos distingue dos outros. E assim a palavra “saudade”, longe dos saudosismos, leva-nos ao coração da língua. É desejo e lembrança para Duarte Nunes do Leão e é gosto e amargura para Garrett. “O desejo é a parte sensual e alegre da Saudade, e a lembrança representa a sua face espiritual e dolorida, porque lembrança inclui a ausência de uma coisa ou de um ser amado, que adquire presença espiritual em nós”. Que quer isto dizer? A língua é uma realidade viva, que faz parte da “arte de ser”. E a verdade é que hoje ela representa um traço de união entre um mundo que os portugueses lançaram, mas que é criação de vários povos e de várias culturas. Leia-se João Guimarães Rosa – ou Pepetela e Mia Couto, Germano de Almeida e Albertino Bragança – e verifique-se como a língua portuguesa se torna rica e multifacetada em contacto com os trópicos. Riobaldo e Diadorim são cicerones de uma língua familiar e estranha, próxima e distante. O Grande Sertão e as suas Veredas é-nos dado por Guimarães Rosa como um fantástico mundo onde as palavras servem para descrever paisagens e afectos, natureza e singularidades, ódios e cumplicidades… “Dormi nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo – Deus estável”. As palavras nascem, vivem, movem-se inesperadas e ricas. “O múltiplo nos inebria”, diz-nos Sophia. E esta língua multifacetada e rica, património comum de vários povos e de várias pátrias – porque pátria de diversas pátrias – conduz-nos ao “homem cordial” de que fala Sérgio Buarque, citando Ribeiro do Couto. Pessoa cordial caracterizada pela lhanheza no trato, pela hospitalidade e generosidade e, sobretudo, pela aversão ao “ritualismo social”. Em suma, pessoa acessível e aberta, com quem funciona o mecanismo dos afectos, que nos aproxima e que nos encanta no contacto com o outro lado de nós.
Guilherme d´Oliveira Martins