A Vida dos Livros

Francisco de Holanda (1517-1585)

Francisco de Holanda encontrou-se com Miguel Ângelo e percorreu então grande parte de Itália para aprender e para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento.

NOS PASSOS DE FRANCISCO D’HOLANDA
A visita à Capela Sistina, em condições únicas de serenidade e atenção, foi o começo da visita à Roma dos portugueses, de que já comecei a falar, graças à hospitalidade de José Tolentino Mendonça. A hora muito matutina, permitiu chegar àquele lugar único, sem o rebuliço habitual, num silêncio quase sepulcral. E quando a luz se abriu, toda a teatralidade se tornou evidente, na diversidade dos quadros e personagens. O nosso qualificado guia falou-nos então de um jovem português aqui chegado nos idos de 1538. “Sendo eu da idade de XX anos me mandou El-Rey (…) a ver Itália e trazer-se-lhe muitos desenhos de coisas notáveis dela”. Referia-se aos passos de Francisco de Holanda (1517-1585), autor de “Da Fábrica que falece a Cidade de Lisboa”, figura notável, mas pouco conhecida dos portugueses, que no percurso dessa viagem se encontrara com a Imperatriz Isabel de Portugal, casada com Carlos V de Habsburgo, que o jovem muito admirava, por ser filha de D. Manuel I, e por ter encomendado a seu pai António de Holanda o retrato do futuro rei Filipe I, ainda criança, ao seu colo. Francisco de Holanda percorreu então grande parte de Itália para aprender, ou seja, para conhecer e desenhar obras da Antiguidade e da arte italiana renascentista do momento. Com maior ou menor intimidade, a verdade é que o português se encontrou com o já muito consagrado mestre Miguel Ângelo, no momento crucial da feitura do Juízo Final, com quem partilhou ideias e tirou ensinamentos, graças à missão de que vinha incumbido por D. João III, à amizade com os Imperadores e ao empenho do notável D. Miguel da Silva, conhecido como Cardeal de Viseu, sobrinho da célebre Santa Beatriz da Silva e do Beato Amadeu da Silva. No pórtico da Basílica de Santa Maria de Trastevere, encontrámos a última morada deste, falecido em Roma a 5 de junho de 1556. Quanto à proximidade de Francisco de Holanda relativamente a Miguel Ângelo, se dúvidas houvesse, os estudiosos como Joaquim de Vasconcelos, invocam uma carta enviada em 1553 ao genial pintor com o pedido de um desenho seu para guardar como lembrança dessa amizade.

IMERSÃO TOTAL NA CIDADE ETERNA
Foi assim que iniciámos uma imersão total na Cidade Eterna, deparando-nos com um novo humanismo, centrado no conhecimento, numa síntese fecunda entre o Antigo Testamento, a influência clássica (bem presente na representação das Sibilas na Capela Sistina) e a Boa Nova de Jesus Cristo. Num dia de sol e calor, na colunata da Praça de S. Pedro lembrámos a presença de dois portugueses: Santo António de Lisboa e de Pádua (“Il Santo”, sem mais qualificação, como os italianos o designam, em homenagem suprema ao seu extraordinário carisma) e Santa Isabel, Rainha de Portugal. A bonomia do Papa Francisco, que testemunhamos, contrasta com as dificuldades que sente ao movimentar-se. Depois, por um momento, encontramos no interior da Basílica de S. Pedro, o único português que está eternizado na pedra, S. João de Deus, fundador da Ordem dos Hospitalários. Enquanto caminhamos, recordamos que foi o controverso Papa Nicolau III a tornar o Vaticano, e a memória do martírio de S. Pedro, centro da Santa Sé. E logo lembramos João XXI, a quem Nicolau III sucedeu, Pedro Hispano (1215-1277), o único Sumo Pontífice português (1276-77), que merece a Dante um destaque especial na “Comédia”: “Pietro Spano lo qual giú luce in dodici libelli…” (“Paraíso”, Canto XII). Visitá-lo-emos em Viterbo e enaltecemos a importância da sua obra multifacetada de Médico, de Teólogo, Matemático e Filósofo – autor do “Thesaurus Pauperum” (com uma centena de edições e tradução em 12 idiomas), das “Summulae Logicales” ou de “De Curis Oculorum”.  Referir os portugueses em Roma, quer em presença física, quer na influência é uma tarefa inesgotável – e apesar de não os conhecermos, numa primeira impressão, depressa compreendemos a sua influência. Ao passearmos nos jardins do Vaticano, vamo-nos apercebendo de uma história em que tudo na evolução do mundo por aqui passa. Não podemos entender os acontecimentos de dois milénios sem considerar a complexa intervenção dos Pontífices, que herdaram a tradição imperial romana, mas também da Cúria, dos Conclaves, dos conflitos com o Sacro Império, das virtudes e dos pecados humanos, das relações que se vão alargando e das fronteiras do mundo que se consolidam ou desfazem. Quando ao início da tarde nos reencontramos na Porta de Santa Ana com o Arquivista e Bibliotecário da Santa Sé, que toda a manhã nos acompanhara, mergulhamos no seu mundo maravilhoso, outrora identificado como secreto, mas hoje submetido às regras gerais dos arquivos. Em outubro de 2019, o Papa Francisco mudou o título centenário do Arquivo Secreto do Vaticano para Arquivo Apostólico, em nome da verdadeira vocação da instituição – ser um revelador de verdade e não de segredos. A Biblioteca Apostólica Vaticana é a mais antiga da Europa foi fundada por Nicolau V (1397-1455) com a herança das antigas bibliotecas papais. Em 1475, o Papa Renascentista Sisto IV (1414-1484), a quem se deve a designação da Capela Sistina, que vamos encontrando a cada passo da nossa viagem, decidiu permitir o acesso dos eruditos aos mais de dois mil e quinhentos textos ali reunidos.

ARQUIVO E BIBLIOTECA VATICANAS
No Arquivo e Biblioteca tivemos uma tarde extraordinária. São impressionantes os números, a extensão linear das estantes, os desafios ligados à preservação de documentação milenar e à inovação tecnológica imparável. Ali podemos conhecer melhor a história milenar exaustivamente documentada. 1,6 milhões de livros impressos, 80 mil livros manuscritos, 100 mil impressões (gravuras e estampas), 350 mil moedas e medalhas. José Tolentino Mendonça fala-nos, com entusiasmo, de um antídoto contra a amnésia. O património cultural e a sua defesa obrigam-nos a preservar a memória como realidade necessária e presente. “Uma das missões fundamentais da Biblioteca Apostólica é a de preservar alguns dos mais antigos testemunhos da tradição manuscrita das Sagradas Escrituras: só isto seria suficiente para considerá-la como o coração da Igreja” – lembra o poeta e cardeal, mas acrescenta, lembrando o Papa Francisco: aqui correm dois grandes rios, a palavra de Deus e a palavra dos homens. Quando olhamos o manuscrito do Cancioneiro da Vaticana aberto numa das páginas da poesia de D. Dinis (73 cantigas de Amor, 51 cantigas de Amigo e 10 de Escárnio e Maldizer) sentimos um testemunho vivo vindo da profundeza do tempo – «Amiga, bom grad’haja Deus / do meu amigo que a mi vem / mais podedes creer mui bem / quando o vir dos olhos meus, / que poss’aquel dia veer / que nunca vi maior prazer». E se sentimos como que uma vertigem perante das primeiras provas da nossa língua, tornada universal, e designada na Ásia como “papiar cristão”, somos levados às origens da nossa identidade, interpelados pela certidão de 1179 do Papa Alexandre III. Nos corredores e recantos daquele edifício quantos mistérios desvendados e por desvendar?   

Guilherme d’Oliveira Martins

Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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