A VIDA DOS LIVROS
de 28 de Junho a 4 de Julho de 2010
“Silêncio” de Shusaku Endo (1923-1996) é uma obra-prima da literatura contemporânea (tradução de José David Antunes, D. Quixote, 1990). Intitulado originalmente “Chinmoku” (1966), este livro teve, desde a sua publicação, um enorme sucesso, suscitando comentários contraditórios. O autor trata de um tema de grande complexidade, a apostasia, especialmente se pensarmos na sociedade japonesa do século XVII. Partindo da experiência de um jesuíta português, Cristóvão Ferreira, prestigiado teólogo, Endo narra uma aventura espiritual ligada às conversões cristãs no Japão e às perseguições que se lhes sucederam. Esta apostasia ocorreu no período das mais violentas perseguições das autoridades japonesas para pôr fim a um processo considerado perigoso. Pretendiam, afinal, estirpar o desenvolvimento de uma influência estranha, que ameaçava as tradições ancestrais.
UM ESCRITOR SINGULAR
Shusaku Endo nasceu na cidade de Tóquio em 1923, viveu a infância na Manchúria, tendo-se tornado católico aos doze anos, por influência familiar, mais precisamente de sua mãe, com quem viveu depois desta se separar do pai, já em Kobe. O futuro escritor licenciou-se em Literatura Francesa pela Universidade de Keio, tendo estudado na Europa, em Lyon, com uma bolsa do Governo do Japão. A sua obra é marcada pelas características especiais da sua identidade pessoal – pertença a uma religião minoritária e de influência exterior, o contacto com a doença e com a vida hospitalar, além dos intensos e dramáticos dilemas morais e religiosos. Neste sentido, aliás, Shusako Endo é muitas vezes comparado a Graham Greene, que tinha uma grande admiração pela obra do romancista japonês. “Silêncio” é considerado o seu livro de maior originalidade e intensidade e mais significativo, o que levou a ser distinguido com o prestigioso Prémio Tanizaki (1966). “A Vida de Jesus” (1973), “O Samurai” (1980) e “Escândalo” (1986) constituem outras obras que permitiram a afirmação de Endo como um grande romancista mundial.
UMA INFORMAÇÃO DRAMÁTICA
Tudo começa com uma informação dramática e inesperada: “A notícia chegou à Igreja de Roma. Enviado ao Japão pela Companhia de Jesus em Portugal, Cristóvão Ferreira submetido à tortura da fossa em Nagasáqui, apostatara. Missionário experiente, credor da maior estima, Cristóvão Ferreira já vivia no Japão há trinta e três anos. Ocupava aí o cargo de superior provincial e era tido como um exemplo inspirador tanto de clérigos como de leigos”… As cartas que, entretanto, mandara da região de Kamigata, onde se encontrava, revelavam uma grande determinação e coragem por parte do padre jesuíta. Essas missivas não faziam suspeitar ou prever qualquer tendência no sentido da negação. É verdade que a partir de 1587, sob a orientação do regente Hideyoshi, a perseguição ao Cristianismo se tornou violenta e persistente, no entanto pouco se sabia sobre os procedimentos concretos adoptados para extirpar a influência cristã e ninguém estava em condições de prever o sentido e alcance das medidas e dos seus efeitos. “Silêncio” trata das informações obtidas pelos Padres Sebastião Rodrigues e Francisco Garpe sobre o acontecimento passado com o Padre Ferreira. O romance é constituído por cartas de Sebastião Rodrigues e por outras informações complementares, que nos levam aos estranhos acontecimentos que levaram à apostasia do mais proeminente dos missionários jesuítas no Japão… Seguindo um ritmo que prende o leitor de princípio a fim, encontramos uma minuciosa narrativa que nos permite compreender a difícil relação entre culturas muito distantes e sobretudo o conflito ético pessoal e íntimo que pôde ser usado e manipulado contra o Cristianismo por parte das autoridades do Japão no século XVII.
CONFLITO PESSOAL, COM RESULTADOS EXTERNOS
Cristóvão Ferreira é retratado como alguém obrigado a defrontar-se com as consequências de uma opção tremenda em que a fé pessoal está ligada ao destino de muitos cristãos japoneses obrigados ao sacrifício supremo pelo qual ele se sente também responsável. E neste ponto não pode deixar de lembrar a meditação angustiosa sobre o porquê da missão de Judas, porquê haver um apóstolo condenado à partida pelo facto de lhe caber a tarefa necessária de entregar o Mestre por trinta dinheiros. Quantos dramas pessoais repetem esse exemplo evangélico? E Sebastião Rodrigues é levado ao caminho de Cristóvão Ferreira, repetindo-o. «O padre abanou freneticamente a cabeça, tapando os ouvidos com os dedos. Mas tanto a voz de Ferreira como o estertor dos cristãos se filtravam por eles impiedosamente, mesmo tapados. ‘Basta, Senhor, basta! É agora o momento de quebrares o silêncio. Já não te podes calar por mais tempo. Mostra que és a justiça, a bondade, o amor por excelência. Tens de dizer alguma coisa para que o mundo saiba que existes’». Esse silêncio pesado domina o drama de quem tem de escolher entre o amor e a morte, sem saber exactamente onde estão um e o outro. A pressão é máxima, desde a culpa à dúvida, do silêncio ao amor. A apostasia concretizava-se pisando a imagem do próprio Cristo, representado num “fumie”. “Por amor deles, até o próprio Cristo teria apostatado”. E Ferreira dirá ao ouvido do novo apóstata: “Você vai agora realizar o mais doloroso acto de amor de que jamais alguém foi capaz”. E é como se fosse uma formalidade, ou como se o próprio Cristo dissesse: “Pisa-me! Eu vim ao mundo para ser pisado pelos homens! Carreguei com a cruz para partilhar da dor que vos é comum…”. E afinal: “Quando o padre assentou o pé no ‘fumie’ nascia a manhã. Ao longe, um galo cantou”…
UMA REFLEXÃO INCÓMODA
«Durante muito tempo (diz Endo) eu senti-me atraído por um niilismo total, e quando, por fim, dei conta do vazio apavorante que nele havia, fui vencido mais uma vez pela grandeza da fé católica. O problema da reconciliação do Catolicismo com o meu sangue japonês… ensinou-me uma coisa: que o homem japonês tem de absorver o Cristianismo sem o suporte de uma tradição, de uma história, de um legado, ou de uma sensibilidade cristãs. Que resistências, que angústias e sofrimentos tem custado esse esforço! Todavia é impossível resistir-lhe fechando os olhos às dificuldades. Não há dúvida: esta é a cruz peculiar reservada por Deus aos japoneses”. O tema não é puramente intelectual, ainda que o romancista sempre tenha insistido em que a sua reflexão não era a de um teólogo mas de um escritor de narrativas. Trata-se de um drama existencial que é tratado magistralmente, que não deve apenas situar-se num momento histórico, mas que se projecta para os dias de hoje e para uma tensão civilizacional, entre as tradições milenares do Japão, o culto dos antepassados e o sincretismo religioso há muito enraizado na cultura japonesa. Daí que este romance tenha sido rodeado de escândalo entre os velhos cristãos do império do Sol Nascente. William Johnston, no prefácio ao livro, salienta que o problema de Endo não é apenas japonês, põe-se também nas sociedades ocidentais contemporâneas: “se os ouvidos do Japão estão ansiosos por surpreender um novo motivo no novo concerto, não menos atentos estão os do Ocidente, em busca de novos acordes consonantes com as sensibilidades nascentes”. Daí que Endo seja muito mais universal do que possa parecer à primeira vista. E se Graham Greene falou sobretudo da tensão entre o Cristianismo e uma sociedade conformista no ocidente, o romancista japonês equaciona a contradição a partir da distância cultural entre o judeo-cristianismo e o Japão. O Professor Yanaibara afirma que não foi o “pântano japonês” que venceu os apóstatas. “Os mártires ouviram a voz de Cristo, mas para Ferreira e Rodrigues essa voz não se fizera ouvir. Não significará isto que esses padres já não tinham fé desde o princípio? Por isso, a luta de Rodrigues com Deus não aparece descrita”. E vemos, no final, que os apóstatas continuam a viver, agora sob um nome budista e embrenhados no ambiente do Japão. O debate é difícil e de conclusões incertas, e é o autor que está bem presente nos dilemas e angústias provenientes dos confins da História, de qualquer modo, uma coisa é insofismável, Shusaku Endo é um dos escritores mais lidos no Japão, mesmo depois da sua morte, e tal só é possível graças ao interesse manifestado por pessoas de diferentes horizontes pelo tema e pelo modo como é abordado.
Guilherme d’Oliveira Martins
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