O AMOR VOTADO ÀS PALAVRAS
«O amor que votavas às palavras, sabias introduzi-las, setas vibrantes num alvo. Usavas a toga com dignidade: escolhias sempre o melhor lado, o menos frágil dos litigantes. Ad vocatus, o que é chamado em auxílio, isso realmente foste. Incapaz de cobrar dinheiro por uma consulta. Meu pai enfurecia-se quando se tratava – altura embaraçosa – de apresentarem conta aos clientes: arranjavas sempre um pretexto para sair. Era a tua premeditação de respeitar os outros, na entrega complacente que merecem e, justamente, esperam de nós, que vestimos à semelhança dos padres e conhecemos, melhor que eles, os jogos lacerantes dos interesses e o curso desvendado das paixões». Nesta dedicatória ao tio Henrique, o poeta António Osório confessa a essência da sua escrita e do seu ofício. Um serviço, uma entrega, uma fidelidade – eis o que um mundo de palavras revela e ao mesmo tempo esconde. Quando lemos esse texto, percebemos que a oficina das palavras do autor de Ignorância da Morte começou por ser a do avô, escrivão da Boa Hora. “A clareza equilíbrio de um oleiro cingido às leis, boas e más do seu barro” constitui a matriz que articula os dois mundos que António Osório procura ligar e distinguir, mas que se completam necessariamente. Inventários, questionários, especificações, mapas de partilhas, mas “em poesia não há causa que se possa ganhar, nem transação a fazer consigo mesmo”.
IGNORÂNCIA DA MORTE
Como afirma Eduardo Lourenço, “a temática central da poesia de António Osório, a da ignorância da morte, graça ou prémio duramente concedido aos que vencem ‘a guerra do tempo’, não ignorando-a, mas fazendo-se semelhantes à criança anterior à morte que todos fomos”. E assim, o ensaísta salienta “o poeta do amor incarnado, sensualizado até à alma”. O amor, a morte e a vida entrelaçam-se. Sem ceder à tentação do rio do esquecimento, torna presentes, “sob a morte e a ruína, (…) a vida e a casa que nela se desfazem”. E Vasco Graça Moura salientou, e bem, como “primeira singularidade da poesia de António Osório”, a vivência de uma “poesia em que a questionação do real decorre da sua própria e plena afirmação”. Uma ilustração? Indubitavelmente “Aldeia de Irmãos”, onde se encontram todos os ingredientes que estão na sua oficina de oleiro: “Ao pé dos eucaliptos, / do lavadouro, as casas. / Capela fechada, oficiantes ratos, / e cães, patos, galos / na rua e a dormir dentro, individuais sub-reptícios. // E doentes, cavadores, crianças / sonhando com ninhos destruídos. / Longe, na paróquia o cemitério. // Em torno vinhas, olivais / irmãos uns dos outros / como tijolos dentro da parede. / E no inverno o canto / da lenha exorbitando na lareira, / a queimar, a queimar a cinza por debaixo”. A realidade e uma ponta de humor, a dura existência humana contraditória, a natureza e o fraterno calor de um encontro. “A teu lado estou / sorrindo a chamar-te, / espero que regresses a casa, / ansiosamente corro para a porta”. Eis, num “in memoriam”, a chave do sentido poético. A memória supera limites e permite compreender como a realidade é bem mais rica do que o presente palpável. «O ofício de advogado levou-me a ser discreto como poeta. As pessoas preferem, naturalmente, bons profissionais do foro a excelentes poetas» – confessou-se assim a Ana Marques Gastão em entrevista ao DN (24.3.2001). A pequena frase diz-nos tudo sobre o que foi. Exímio cultor do seu ofício, viveu a poesia como respirava o ar que nos faz existir. E a sua exemplar poesia foi o modo de exprimir a riqueza do espírito. Com orgulho lembro-o como meu Bastonário, exemplo numa profissão tão vulnerável e exigente. E não me cansarei de dizer que, como advogado, foi dos melhores e que a sua memória tem de ser muito lembrada – pelo saber, pelo espírito de justiça, pela compreensão do Direito e da lei como sinais de humanidade e da dignidade do ser.
LONGAS CONVERSAS…
Em longas conversas inesquecíveis, recordava a sua infância, com mãe italiana e pai português: “todos os dias, minha mãe lia-me os seus livros cuidadosamente arrumados”. “Ilíada” e “Odisseia”, sempre em italiano. A seguir passou para Dante. “Explicava-me aquelas estâncias, contava-me as histórias florentinas, as perseguições que sofrera esse poeta que não era herói inferior a Ulisses…”. Do pai, ouvia os Contos e as Histórias Maravilhosas da tradição popular, recolhidas pela tia Ana de Castro Osório. E a belíssima toada florentina era completada pela melhor língua portuguesa – Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha. E devo a essas charlas, ditadas pela amizade a invocação circunstanciada, com emoção especial, das raízes familiares. Ele, ainda menino, chorando inconsolável a derrota de Heitor perante Aquiles; a presença do tio Henrique; Maria Valupi e a “Felicidade da Pintura” com Miguel Ângelo Lupi; o exemplo de Ana de Castro Osório, cidadã corajosa e pioneira, que permitiu a revelação de Camilo Pessanha e da “Clepsydra” (que, sem ela, teriam ficado no esquecimento); as afinidades eletivas da Arrábida e de Setúbal dos nossos avós, que me recordou logo que nos conhecemos. “Aqui, junto a estas árvores / cresceste como a sua melhor sombra, / a mais alta, solícita” (como disse de Sebastião da Gama. Um dia fui em peregrinação ao túmulo de seu avô, aos pés de San Miniato al Monte, na mágica Florença, cidade natal de sua mãe. Nunca esquecerei tão intensas lembranças de quem “gostaria de ser visto como alguém que encontrou as suas raízes primordiais na Grécia, emigrou para a Sicília quando da Magna Grécia, sente por Roma uma funda admiração, e pertence a uma geração de uma tradição cultural mediterrânica e atlântica, universalista, que abarca o italiano, o francês, o espanhol e o português”. E o universalismo era uma marca muito séria. E encontramos ecos de Bashô e da espiritualidade oriental. “Não sigo o caminho dos antigos, busco o que eles buscaram”. Era emocionante um encontro com o poeta, que preferia o puro culto da amizade e da memória, como na lembrança de seu pai (e de sua mãe): “Assim te amo agora sem lágrimas, / Que deste modo teus netos / um dia se recordem de mim, / na tua, minha e deles pura ignorância da morte”. De facto, nunca ignorou que a poesia é sempre um mistério e uma aproximação ao sagrado, como aliás a música. Daí a relação com a morte, como luta contra a obscuridade. E os mortos, na sua memória querida, ajudam na procura de outra serenidade, como modo de purificação. Assim, João Gaspar Simões leu o poeta “com uma efusão de alívio, o alívio que se sente quando, num quarto muito abafado, alguém abre de súbito uma janela”. E Eugénio Lisboa, leitor atento e premonitório de A. Osório, salienta a surpresa da absoluta claridade, da frescura primordial e da objetividade de Cesário. E assim se entende que “Com os anos / a pouco e pouco / a raiz afetuosa / penetrou / no fundo da terra / até chegar / ao mais pequeno / e mais antigo / veio de lágrimas”.
Guilherme d’Oliveira Martins
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