A VIDA DOS LIVROS
de 14 a 20 de Junho de 2010
Há cinco anos, deixou-nos Eugénio de Andrade (1923-2005), poeta da transparência e da compreensão do quotidiano, autor de obra vasta, entre a qual se destaca: “Ofício de Paciência”, 1994; “O Sal da Língua”, 1995; “Pequeno Formato”, 1997; “Os Lugares do Lume”, 1998; “Os Sulcos da Sede”, 2001. Hoje recordamo-lo sentidamente.
Eugénio de Andrade, por José Rodrigues, 1977.
EUGÉNIO DE ANDRADE E A CIDADE DO PORTO
O Porto é uma cidade que há muito sinto como minha e se isso acontece, tal deve-se à minha ancestralidade, mas muito a Eugénio de Andrade e ao que a sua escrita e a sua sensibilidade me ensinaram a amar a única cidade-estado que houve em Portugal, no dizer de Jaime Cortesão. E se há referências indeléveis que encontramos na Cidade Invicta, as mais marcantes, disse-o o poeta, melhor do que ninguém, é essa trilogia mágica, que liga Fernão Lopes, Garrett e Camilo. E como poderemos ser mais portuguesmente fiéis à História e à alma da pátria? «A grande trindade poética que lavra, nesta pedra escura, o perfil seguro do Porto – Fernão Lopes, Garrett e Camilo – leva fatalmente à cidade uma pessoal visão de mundo, o seu génio próprio. O Porto de Fernão Lopes é quase legendário: heróico e honrado; o de Camilo, grotesco e dramático; o de Garrett irónico, pitoresco e sentimental. São três tempos (em duplo sentido: histórico e musical) do seu carácter que, embora esquematicamente enunciados, nos permitem algumas aproximações. A cidade viril de Fernão Lopes é ainda a de Herculano, Ramalho, Jaime Cortesão e Miguel Torga; Raul Brandão, Pascoaes e Agustina estão, de algum modo, na continuação do pessimismo de Camilo; de Garrett parte, dessorada, perdido por completo o seu impenitente humor, toda uma toada que de Júlio Dinis e António Nobre vem desaguar em tanta loa tacanhamente regionalista e deprimente. Isto para falarmos apenas de quem mais se debruçou na alma destas pedras, bem pouco transparente, como se vê. Não sei como é que a palavra se insinuou: convenhamos que vem pouco a propósito».
UMA CIDADE HERÓICA, DRAMÁTICA E SENTIMENTAL
E qual a força que Eugénio de Andrade usa para tornar a cidade ainda mais heróica, dramática e sentimental? Apenas a da interpretação, a de usar os sentidos para apreender a força das coisas e das pessoas. Por um momento, percebemos, como através de “Douro, Faina Fluvial” mas também através António Cruz em “O Pintor e a Cidade” que a transparência se liga ao granito, à saudade e ao humor melancólico. A cidade dos “Altos Infantes” e dessa plêiade extraordinária de portugueses de boa cepa, abertos, livres, criativos, emancipadores. «A transparência é aqui nostalgia: até a luz terá a cor do granito. Mas o granito é às vezes de oiro velho, e outras azulado, como o luar escasso que nesta noite de Outono escorre dos telhados. Quando o sol, mesmo arrefecido, incide nos vidros, as mil e uma clarabóias e trapeiras e mirantes da cidade enchem o crepúsculo de brilhos – o Porto parece então pintado por Vieira da Silva: é mais imaginário que real».
UM RIO QUE MARCA A CIDADE
O rio marca a cidade, não podemos compreendê-la, nem compreender-nos, sem essa ligação íntima entre o Douro e o Porto. Daqui houve nome Portugal – e a afirmação não é de somenos – é fundamental, já que as qualidades do Porto são naturalmente assumidas em relação ao todo nacional. E temos de ouvir o poeta: «É urgente o amor. / É urgente um barco no mar. / É urgente destruir certas palavras, / ódio, solidão e crueldade, / alguns lamentos, / muitas espadas. /É urgente inventar alegria, / multiplicar os beijos, as searas, / é urgente descobrir rosas e rios / e manhãs claras. / Cai o silêncio nos ombros e a luz / impura, até doer. /É urgente o amor, é urgente permanecer». Torna-se necessário, no fundo, entender a força das palavras. E Eugénio marcou sempre pelo timbre do dizer, pela coerência, pela força de clamar entre as pessoas. As palavras marcam a ligação íntima entre pessoas e pessoas, entre pessoas e lugares. Continuemos, pois, a ouvi-lo: «1. Sê tu a palavra, / branca rosa brava. / 2. Só o desejo é matinal. / 3. Poupar o coração / é permitir à morte / coroar-se de alegria. /4. Morre de ter ousado / na água amar o fogo. /5. Beber-te a sede e partir / – eu sou de tão longe. / 6. Da chama à espada / o caminho é solitário. / 7. Que me quereis, / se me não dais / o que é tão meu?». E como não recordar, como procura do essencial: «Colhe todo o oiro»: «Colhe todo o oiro do dia / na haste mais alta / da melancolia»? Eugénio de Andrade diz-nos exactamente o que está em causa na Arte Poética. Aí está a tal coerência entre o ser e o dizer, entre o proclamar e o agir. Talante de bem fazer – na expressão do Infante. Mas aqui o talante é do poeta incansável, empenhado, atento, de olhos bem abertos. «O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de conhecimento que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem». E é o poeta que clarifica, ele mesmo: «É contra a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta amputação no corpo vivo da vida que o poeta se rebela. E se ousa “cantar no suplício” é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se, e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a S. João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Bay a William Blake, de Bashô a Kavafis, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada poema». A dignidade liga-se à vida e às pessoas, na sublimidade da palavra!
BREVE ROTEIRO
Eugénio de Andrade é o pseudónimo de José Fontinhas, que nasceu no Fundão, na Póvoa das Atalaia, tendo vindo para Lisboa com dez anos, com a mãe. Foi aluno do Liceu Passos Manuel e da Escola Machado de Castro, tendo começado a escrever poesia em 1936. Em 1943 parte para Coimbra, onde volta depois de cumprir o serviço militar obrigatório. É o tempo em que se relaciona com Miguel Torga e Eduardo Lourenço. É funcionário público, em 1947, exercendo funções de inspector administrativo no Ministério da Saúde. Três anos depois, fixa-se no Porto, onde mora na Rua Duque de Palmela, 111, morada celebrizada pelo poema com esse mesmo título: «Pelo lado dos lódãos ao fim do dia / depressa se chega agora no verão / à pedra viva do silêncio / onde o pólen das palavras se desprende / e dança dança dança até ao rio». Aí habitará até que se muda, em 1994 para o Passeio Alegre, na Foz do Douro. Recebeu inúmeras distinções, entre as quais o Prémio da Associação Internacional de Críticos Literários (1986), Prémio D. Dinis (1988), Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (1989) e Prémio Camões (2001). Em Setembro de 2003 a sua obra “Os sulcos da sede” foi distinguida com o prémio de poesia do Pen Clube. Morreu na sua casa da Foz a 13 de Junho de 2005, faz agora cinco anos. E recordemos o seu poema “O Sal da Língua”: «Escuta, escuta: tenho ainda / uma coisa a dizer. / Não é importante, eu sei, não vai / salvar o mundo, não mudará / a vida de ninguém – mas quem / é hoje capaz de salvar o mundo / ou apenas mudar o sentido / da vida de alguém? / Escuta-me, não te demoro. / É coisa pouca, como a chuvinha /que vem vindo devagar. / São três, quatro palavras, pouco mais. / Palavras que te quero confiar. / Para que não se extinga o seu lume, /o seu lume breve. / Palavras que muito amei, / que talvez ame ainda. / Elas são a casa, o sal da língua».
Guilherme d’Oliveira Martins
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