UMA BOA METÁFORA
lmente, ao recordar nestas páginas, a memória de Mário Mesquita, escolhi um título improvável. Falo do célebre livro de E.P. Jacobs, protagonizado por Blake e Mortimer, que invoca os Açores e o mito antigo de um fantástico continente desaparecido (1957). Como é fácil de compreender, a invocação é um pretexto para lembrar vários amigos açorianos e uma solidariedade atlântica com especial pendor democrático. Como sabem bem os meus amigos, esta minha ligação tem a ver com Antero de Quental, e com um culto especial que lhe devoto, por razões familiares, sobretudo quando outros com elos mais próximos manifestavam estranhas distâncias. Desde sempre convivi com a memória do poeta e com a sua imagem, marcada pela beleza dos seus poemas que aprendi de cor e pelo seu magistério de pensador e idealista. “Sonho que sou um cavaleiro andante. / Por desertos, por sóis, por noite escura, / Paladino do amor, busco anelante, / O Palácio encantado da ventura”. Desde que conheci Mário Mesquita estas raízes comuns de uma certa açorianidade liberal e progressista estiveram sempre presentes, não só no sentido da nossa amizade, mas também enquanto independência e culto de diferenças e convergências, que o tempo só reforçou, a ponto de termos ficado com temas aprazados ainda para tratar, que não esquecerei. Oliveira Martins foi tão próximo do poeta micaelense, a ponto de dizer quando recebeu a notícia do trágico desenlace – “Se eu estivesse junto dele, o Antero não se teria matado”. Ou, quando o médico José Tomás Sousa Martins, junto ao leito de morte, lhe disse que tinha terminado o texto para o “In Memoriam”, o historiador afirmou serenamente não ter isso importância porque o leria já na companhia do dileto amigo… Antero e os Açores fizeram sempre parte da nossa amizade, cientes de que a liberdade e a vida se constroem nos dias de hoje, para além dos bons exemplos dos nossos antepassados. A dúvida e a atitude cética estavam presentes no modo de ser de Mário Mesquita. “A cultura de debate é inerente à democracia”. Afinal, para podermos caminhar, teremos de ser críticos, atentos e nunca conformistas. Foi assim, também com José Medeiros Ferreira, em longas e profícuas convergências sobre os temas europeus, designadamente na defesa da necessidade de um Senado europeu, para ultrapassar o défice democrático e ir ao encontro da dupla legitimidade, dos Estados e dos cidadãos, sem a qual a democracia europeia continuará frágil e incompleta. E falando de sentido exigente e crítico, o mesmo se diga de Jaime Gama, Eduardo Paz Ferreira (meu colega e amigo próximo) ou ainda de Mário Bettencourt Resendes, que também aqui desejo invocar. Francisco Seixas da Costa tem razão em falar de uma “Ínclita Geração” de açorianos democratas, chegados a Lisboa em finais da década de 60, cerca de cem anos depois das emblemáticas Conferências do Casino Lisbonense, do mesmo modo que é muito ajustada a palavra “plêiade” usada por Onésimo Teotónio de Almeida (cf. JL, 1 a 14 de junho 2022). Esse o enigma da Atlântida.
ESCREVER COM CLAREZA
“Saber redigir uma notícia e fazer uma reportagem é treino seguro para se aprender a escrever com clareza” – lembra Onésimo. “No entanto alguns jornalistas ficam-se apenas por aí. Os espíritos talentosos, porém, sabem depois acrescentar à escrita uma dose de elegância q.b. que sem afetação toca o paladar do leitor e o faz tomar-lhe o gosto, a ponto de o tornar saudavelmente dependente. (…). Em Mário Mesquita, a longa experiência jornalística aliada ao gosto literário fundiram-se numa escrita ágil, subtil – subtileza a um deveras elevado grau – arguta e incisiva, produzindo uma prosa fresca, por vezes mordaz, arejada, inteligente e segura”. Os seus editoriais eram marcantes, com a precisão do bisturi. Foi, de facto, um dos melhores cultores da língua portuguesa. E está dito aqui, com meridiana clareza o que merece ser dito. Lembramos os melhores momentos do nosso jornalismo político, vindo à lembrança os heroicos tempos de Rodrigues Sampaio com “O Espetro” (1846), – antecâmara clandestina de “A Revolução de Setembro” -, que no combate se tornou paradigma da ligação entre a escrita e a luta pela liberdade, contra a “lei da rolha” e todas as formas de censura. O único modo de abater as barreiras censórias ou limitativas está em publicar e em trabalhar. E o jovem Mário Mesquita foi exemplo premonitório nas véspera de 1974, sobretudo lembrando-nos de “Portugal sem Salazar” (com Manuel de Lucena, António Barreto, Medeiros Ferreira e Valentim Alexandre), e da entrevista durante muitos anos mantida inédita feita em 1970, e publicada por Maria Inácia Rezola, a Ernesto Melo Antunes, que constitui um exercício notável de inteligência política e de capacidade de entender a história por antecipação, para não falar da entrevista a Eduardo Lourenço de 1972. Trata-se de peças notáveis, podendo mesmo dizer-se não ser possível escrever a história da transição democrática sem essas peças fundamentais. Como afirma no prefácio de “Portugal sem Salazar”, o jovem jornalista, como “public intelectual”, perante a censura haveria dois modos de contrariar tal tendência, publicando o que era possível, e ainda refletindo e trabalhando no sentido de recolher a informação necessária, em contacto com a realidade, ouvindo os protagonistas. E volto a concordar com Onésimo Teotónio de Almeida, quando salienta que Mário Mesquita se empenhou, consciente e persistentemente, na busca de um equilíbrio entre os dois princípios básicos da modernidade – o da justiça e o da liberdade”. Assim foi sempre.
A IMPORTÂNCIA DA CRÓNICA
E compreende-se a importância que Mário Mesquita dava à crónica. Oiçamo-lo: “discordo de certos autores para quem a crónica entrou irremediavelmente em decadência. Parece importante preservar, por entre caudais diluvianos de informação escrita e audiovisual, a possibilidade de conversar, de cronicar ou de croniquejar. Forma de expressão característica do jornalismo dos países latinos, importa mantê-la viva, evitar que claudique e deponha armas perante a tendência uniformizante da informação dos porta-vozes. Porque é um espaço estimável de anarquia e de fuga aos coletes-de-força que tantas vezes tornam estéril e desinteressante a prática de outros géneros jornalísticos” (“Deve & Haver”, 1984, p. 218). Vitorino Nemésio ou Carlos Drummond de Andrade ensinaram-nos a compreender que as notícias e as não notícias precisam de ser atentamente vistas, não pelo lado grandiloquente, mas enquanto pedaços da vida vivida, vistos pelos olhos de quem não está constrangido por condicionantes que adulteram a realidade, mas sem a tentação de olhar pelo buraco da fechadura. A escrita baseada num olhar liberto e crítico permite desanuviar e desassossegar.
Guilherme d’Oliveira Martins
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