A VIDA DOS LIVROS
de 7 a 13 de Junho de 2010
“Antero de Quental em Vila do Conde” de Luís de Magalhães, com recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins (Tinta da China, 2010) permite-nos mergulhar de pleno no mundo fantástico de Antero de Quental e dos seus amigos. O jovem Luís de Magalhães que secretariou a Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero é o melhor cicerone para nos fazer entrar nessa mundo exclusivo, de uma plêiade de génios que teve a coragem de pensar Portugal, não numa lógica fatalista e derrotista, mas com os olhos postos no futuro, acreditando em que seria possível mobilizar vontades, fazendo país sair da modorra e do conformismo. É difícil conceber um tal programa? Eis por que razão este livro deve ser lido.
LEMBRAR OS JACARANDÁS
Com dez dias de atraso, os jacarandás de Lisboa estão cobertos de flores lilazes. Este ano a floração começou tímida, mas já está pujante e é fantástica a cidade coberta de flores, que fazem recordar o Brasil e o idioma tupi guarani. A vida faz-se destas pequenas preciosidades. E a verdade é que não pode haver Pentecostes na capital sem a beleza extraordinária dos jacaranbdás. E se falo de preciosidades e de Pentecostes, sou levado, quase naturalmente à açorianidade e a Antero de Quental. De facto, acaba de sair um pequeno livro que nos prende de princípio a fim e que é um conjunto de testemunhos da autoria de alguém que conheceu como ninguém a chamada «geração de setenta», de quem nos deu uma lembrança viva – de que não podemos prescindir. Entremos então neste «Antero de Quental em Vila da Conde» de Luís de Magalhães, com recolha, prefácio e notas de Ana Maria Almeida Martins, que reúne diversos textos que Luís de Magalhães (1859-1935) escreveu em recordação de seu amigo e mestre Antero de Quental. Magalhães, como bem sabemos, era filho de José Estêvão, o grande tribuno e herói do liberalismo, grande amigo de Oliveira Martins, Guerra Junqueiro e Antero. Em meados dos anos oitenta, na cidade do Porto, o jovem Luís tornou-se um dos entusiastas da “Vida Nova”, entrando na política pela mão do escritor do «Portugal Contemporâneo». Esteve ao lado de João Franco (na derradeira tentativa de salvar a governação, que infelizmente apenas se ficou pela intenção e pela incapacidade de gerar consensos duradouros) e depois da queda da Monarquia conspirou para a sua restauração, num gesto quixotesco, sendo encarcerado na Cadeia da Relação do Porto (a mesma em que esteve Camilo, que foi visitado pelo próprio Rei, D. Pedro V) até ser amnistiado, após uma defesa determinada, amiga e inflamada feita por Guerra Junqueiro.
A QUINTA DO MOSTEIRO
A residência de Luís de Magalhães na Quinta do Mosteiro, em Moreira da Maia, eternizada na «Correspondência de Fradique Mendes» como Refaldes, acolheu as maiores glórias do último quartel do século XIX. Antero era visita habitual com outros companheiros de geração, como Oliveira Martins e Eça de Queiroz. E o certo é que sentimos fortemente essa cumplicidade… «Um dia encontrei-o estirado na cama (conta Luís de Magalhães, sobre Antero), ao que longamente o forçavam as suas demoradas digestões, tendo ao lado um rapazito de 9 ou 10 anos, pobremente vestido., a quem estava ensinando a fazer contas numa folha de papel. Ao ver-me entrar, deu a lição por terminada e explicou-me porque vinha achar em funções de mestre-escola. Aquele pequeno era o filho da sua servente. Para se entreter, dizia, encobrindo o seu bondoso móbil, – resolvera leccioná-lo. O discípulo, porém, era notavelmente obtuso no entendimento. E, longe de se enfastiar, com a resistência pétrea daquele cerebrozinho, Antero pretendia que o contacto de tanta estupidez lhe descansava o espírito».
UM TEMPO SINGULARMENTE FELIZ
O tempo em que Antero esteve em Vila do Conde foi sem dúvida o mais feliz da vida do poeta – e estes textos de Luís de Magalhães, agora dados à estampa, dão-nos essa exacta impressão. Diz-nos: «Chamei a Vila do Conde o seu ascetério, – e era de facto. O seu quarto, despido de todo o conforto, era como a cela de um monge, como os quatro muros nus em que se enclausurava um emparedado, como a coluna de um estilita. Ali vivia, concentrado em si mesmo, levado no turbilhão dos seus sonhos, das suas dúvidas, dos seus anseios de verdade, das suas visões trágicas, que cristalizavam sempre em sentidos e soberbos versos. Os seus êxtases eram a absorção do seu alto pensamento no enigma das origens e na interpretação do Universo – as suas orações, os seus sonetos. De dia, raramente o encontrariam na rua. Os seus passeios eram quase sempre nocturnos». Sentimos, assim, a proximidade do poeta e da pessoa adorável – «tolerância viva», «místico sem fé»… Magalhães conhecia pessoalmente Antero desde o Verão de 1881, quando o poeta aguardava a finalização das obras de sua casa em Vila do Conde, graças à hospitalidade de Oliveira Martins na Rua da Boavista. Aliás, fora pouco antes que, em 21 de Abril desse ano, o escritor de «O Brasileiro Soares» conhecera o autor de «Portugal Contemporâneo» – «Fui ontem visitar um homem de grande merecimento, uma das primeiras inteligências do país» (como confessaria a sua Mãe). Luís de Magalhães não esconde que «entre as melhores recordações» da sua mocidade, uma das que mais lhe elevava o espírito e lhe aquecia o coração, era a das «visitas a Antero no seu recatado cenóbio de Vila do Conde». Aí temos a recordação da «minúscula e solitária Praça Velha», de Antero a assomar do alto da escada a levantar o fecho da cancela – era um tempo em que Antero «estava nos seus dias joviais e de belo e fascinante humor». Foi aí e nesse tempo que Antero de Quental escreveu «Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do século XIX» – de que Ana Maria Almeida Martins diz, justamente, ser «por certo o mais importante ensaio filosófico do século XIX português». Assim, o é, com efeito – e ainda o ouvimos: “A evolução não é apenas uma complicação crescente das forças elementares: é um alargamento da ideia, isto é, de existência verdadeira. E se o ideal supremo, que tudo atrai, para tudo gravitar, é razão, vontade pura, plena liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida, definindo-se como espiritualidade gradual e sistemática do universo». Afinal, «o drama do ser termina na libertação final pelo bem». E ouvimos o soneto: «Fui rocha, em tempo, e fui, no mundo antigo, / tronco ou ramo na incógnita floresta».
O CARISMA ANTERIANO
Ao seguir o percurso testemunhal de Luís de Magalhães, aprendemos a conhecer melhor Antero e os seus, mas igualmente entendemos os seus discípulos e seguidores da geração seguinte. O carisma de Antero é evidente. Há uma irradiação de espírito que se sente a cada passo – e que as «Tendências Gerais» permitem compreender e interpretar. E Luís de Magalhães resume, com precisão e afecto: «Quando, no futuro, este grande nome, entrando nos domínios da História, despertar a curiosidade erudita – essa incansável curiosidade que busca reconstituir, passo a passo, episódio a episódio, acto a acto, a vida dos homens ilustres, os investigadores sofrerão a maior das decepções ao toparem com uma existência modesta, simples, sem datas ligadas às dos grandes acontecimentos do seu tempo, sem decorações teatrais, sem brilho mundano, sem agitações aparentes – uma existência cuja memória sobreviverá, quase exclusivamente, pelo esplendor de um grande génio poético e de uma altíssima tradição moral»…
Guilherme d’Oliveira Martins
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