As “armas” da violência
Reflexões a partir da Audição de 24 de Abril de 2010
Os diversos depoimentos, os comentários sobre eles feitos e a discussão com a assistência proporcionaram ao Observatório preciosas indicações sobre questões relevantes a reter quando se reflecte sobre a violência e as acções a desencadear, de imediato e a mais largo prazo, para a combater e, sobretudo, para a prevenir.
Com o objectivo de difundir esta reflexão e os propósitos de actuação com que nos deparamos, passamos a enumerar os aspectos mais relevantes de uma e de outra.
A visão das vítimas
• Para além do que dizem as estatísticas, a violência é um fenómeno de todas as horas no nosso quotidiano.
• A comunicação social “vende” bem a violência relatando-a à saciedade e logo abandonando uma quando surge outra ainda mais espectacular.
• Este facto contribui para uma percepção elevada de insegurança. Quem observa a violência para encontrar vias de lhe fazer frente ou, mesmo, preveni-la, deverá ter cuidado no modo como equaciona o fenómeno da violência, devendo cingi-lo aos factos, evitando o contágio emocional dos relatos especulativos.
• A violência é um exercício de abuso de poder de alguém que se considera mais forte contra quem está colocado numa situação de desvantagem. Há que procurar suprimir os factores que levam alguém a agir, sobre outrem, física ou psicologicamente, a seu belo prazer, retirando-lhe a pretensa impunidade dos seus impulsos ou despertando-lhe a atenção para alternativas de comportamentos mais consentâneos com o respeito dos direitos humanos.
• Estamos mais intransigentes em relação à violência porque estamos mais despertos para a observância dos direitos humanos. Por outro lado, as sociedades evoluem e vão olhando de modo diferente para os valores por que pautam o seu comportamento, valores estes que não são perenes. Assim, certos castigos corporais de aplicação corrente há uma geração atrás, mesmo no seio das famílias estruturadas, são hoje olhados como exemplos acabados de violência física, plenamente integráveis no conceito de violência doméstica.
• A violência doméstica, uma das formas de violência com maior crescimento de ocorrências registadas em Portugal, não deve ser reduzida à violência de género, como acontece em alguns países. A sua luta e prevenção deverão ser feitas através de intervenções dirigidas à faixa maioritária dos implicados na violência no seio da família, incluindo, para além dos cônjuges afectados, crianças e idosos, que deverão ter um tratamento adequado às circunstâncias, idade e dependência económica em que se encontram.
• Sendo a violência doméstica um dos sintomas mais visíveis da desestruturação familiar com implicações tão nocivas sobre o comportamento de crianças e jovens – mesmo que simples testemunhas –, haverá que encará-la na escola e na sociedade, de forma prioritária no contexto da luta e prevenção da violência.
• Deste modo, impõe-se que a tomada de decisões nesta luta e nesta prevenção, seja precedida, mesmo que de forma relativamente expedita, por uma análise dos custos sociais, económicos e financeiros e da sua dimensão e complexidade – que são enormes – pois uma intervenção pouco ambiciosa correrá o risco de perpetuar o clima de violência doméstica que actualmente se vive sem reduzir significativamente os impactos negativos sobre a harmonia social e a eficiência económica, desbaratando dinheiros públicos e competências humanas.
• No quadro da violência doméstica há que prestar mais atenção a uma modalidade muito frequente e, também, muito antiga e, por vezes, esquecida, que é a violência psicológica. Começando, muitas vezes, ainda, na fase do namoro, converte-se num atentado continuado à liberdade de pensar e de agir do outro, num arrastar de um ambiente de coacção de que dificilmente se sai ao longo de toda uma vida.
• Ao contrário do que por vezes se crê, as causas da violência doméstica não são o álcool ou as drogas. Estas dependências constituem apenas factores potenciadores.
A visão da Escola e dos mais jovens
• A Escola é um elemento central na luta contra a violência e, em particular, na sua prevenção, na medida em que não pode deixar de ser vista desintegrada do mundo em que está inserida e que abrange o bairro, o município e o próprio distrito.
• O mundo não está mais violento – recordemo-nos das convulsões da Guerra Civil de Espanha ou da Segunda Guerra Mundial –. Vivemos, antes, outro tipo de violência resultante de um vasto conjunto de pequenas violências que transformam o mundo num local muito violento.
• Destas violências, a de grande relevância para a Escola é a violência familiar, testemunhada ou vivida pelas crianças e jovens que, depois, precisam de a expressar e o fazem na rua ou na Escola. A falha ou a impossibilidade da família, que é a primeira instância socializadora, obriga a Escola a lidar com alunos com os referenciais sociais deturpados. A Escola não poderá eximir-se a esta função pois ela é uma parte do tecido social.
• A Escola – que é parte de um todo mais violento – pode tornar-se num factor de mais violência ou num factor de redução de violência conforme encare o seu relacionamento com o mundo exterior, em particular com as famílias dos seus alunos.
• A Escola tem de ser suficientemente aberta e dispor de vontade e meios para acolher os problemas com que se defrontam os seus alunos e transformá-los em problemas da Escola, dos seus professores e dos alunos, de modo a que todos possam contribuir para a sua solução. E os docentes e os seus auxiliares têm de estar preparados e motivados para desempenhar esta missão.
• A escola deve preocupar-se com as vítimas da violência escolar, mas deve igualmente cuidar do agressor.
• A Escola deve estar disposta a aprender com os alunos, devolvendo-lhes a forma de apreender conhecimentos e de conseguir transformar lideranças negativas, detectadas no meio estudantil, em lideranças positivas com efeitos no curto prazo para a própria Escola, a família e a comunidade em que se insere.
• Ao acolher os problemas que os alunos trazem do seu grupo de pertença, acrescidos pela sobre estimulação de violência dada pela má televisão, por jogos de computadores e pela própria vivência na rua ou no bairro, a Escola deverá proporcionar um espaço de reflexão que envolva professores e alunos na solução daqueles problemas. Se necessário deverá encontrar o castigo adequado às prevaricações nela registadas, castigo que deverá ser entendido e aceite, sob pena de ser visto como uma mera repressão que, por sua vez, é geradora de mais violência.
• A capacidade reflexiva dos jovens ultrapassa em muito a imaginação dos adultos, como o atestam experiências como a redacção de “cartas de direitos” feitas por jovens que se sentem desinseridos. Esta capacidade devia ser aproveitada, de modo generalizado, para a elaboração conjunta de códigos de conduta na Escola quanto à aprendizagem, ao aproveitamento dos tempos livres, às relações interpessoais, e, se possível, ao relacionamento com a família e com o meio envolvente.
• Para além de proporcionar conhecimentos para enfrentar os problemas de hoje, a Escola deverá promover nos seus alunos o sentido de ser socialmente reconhecido, de pertença, da necessidade de se transformar em modelos para os outros jovens, o sentimento de realização e a construção de uma escala de valores em que toda a sociedade se reveja, de que se destaca a prática desinteressada do bem.
• Acima de tudo deverão ser criadas condições que respondam à necessidade, em particular dos mais novos, de se ser respeitado. Retirar os medos, a divisão entre fortes dominadores e fracos subjugados, instilar sentimentos de confiança, de respeito pelos outros e de capacidade para ultrapassar, positivamente, situações adversas, são vias a prosseguir activamente.
• Para além da Escola, a organização da sociedade para ocupar os tempos livres dos mais jovens é fundamental, através de associações com fins culturais, sociais e desportivos.
• Junto dos mais novos, também, há que ajudar a encontrar objectivos válidos em termos sociais, levando-os a projectar a vida futura com metas realizáveis e ambiciosas envolvendo, em qualquer dos casos, o estudo e a aprendizagem como forma de apreensão de conhecimentos úteis, para eles e para a sociedade onde se inserem.
A visão da Forças de Segurança
• A criminalidade violenta e grave manteve-se nos últimos anos num patamar elevado de crimes registados (acima dos 22.000 por ano) com pequenas variações de ano para ano. Embora representando 5,8% do total da criminalidade registada é o tipo de criminalidade que mais impressiona a opinião pública e a que mais contribui para a percepção de insegurança pela sociedade no seu todo.
• Desta criminalidade violenta e grave destaca-se a cometida por grupos de características internacionais extremamente bem organizados que surgem no nosso território a praticar acções de grande retorno, de elevada espectacularidade, dificilmente preveníveis e reprimíveis e de que muitas vezes se saem sem serem identificados e impunes. Estas práticas e outras também ligadas ao crime organizado transnacional, exercidas numa sociedade sem fronteiras terrestres guarnecidas colocam a questão de se saber até que ponto está preparado o controlo do território relativo à penetração das suas fronteiras terrestres, marítimas e ao seu espaço aéreo para fazer face, de forma adequada, a estas formas de actividades ilícitas e extremamente perniciosas para a segurança nacional.
• À criminalidade violenta e grave acrescem, segundo critérios meramente estatísticos os crimes de violência doméstica (20.543 em 2009) em elevada progressão anual (mais 10% em 2009 do que no ano anterior), o que se deve, também a uma crescente procura de apoio nos sistemas de segurança e de justiça por parte das vítimas, fruto de alterações positivas na Lei e do acolhimento dispensado e devido também a uma mudança do pensar e do agir da sociedade em relação a este tipo de violência perante a qual a sociedade se tem mostrado cada vez mais intransigente.
• A prevenção e o combate à violência deverão ter em conta os múltiplos factores que para ela contribuem de que se destacam a desfuncionalidade de instituições decisivas na socialização e formação para a cidadania dos jovens como a família e a Escola. As razões destas falhas deverão ser percebidas e solucionadas nas suas causas, ao nível económico e social, sob risco de se continuar a perpetuar a perturbação da sociedade por elementos sem valores e comportamentos adequados a uma vida em conjunto.
• Deverá encarar-se frontalmente a inversão de padrões de referência social que premeiam atitudes e actividades ilícitas, bem para além do retorno material que proporcionam, dificultando a reinserção social dos prevaricadores.
• Erros cometidos num passado recente noutros domínios, como por exemplo o urbanismo, ajudaram a criar espaços habitados sensíveis que, no seu limite, se tornaram territórios favoráveis à prática de crimes, muitas vezes a cargo de grupos organizados. Torna-se necessário, também, corrigir rapidamente estes erros urbanísticos, acabando com estas zonas de exclusão, inserindo os seus habitantes na malha urbana, ao mesmo tempo que se combate, de forma sistemática e coordenada, as diversas manifestações de crime organizado.
• As forças de segurança, cuja acção de prevenção passa despercebida, deverão ver acentuadas as suas actividades de proximidade, exercidas de forma tão articulada quanto possível entre si e com os outros parceiros do Sistema de Justiça e demais entidades, públicas e privadas, com vocação preventiva, a montante e a jusante da intervenção policial.
• O princípio de que ao Estado compete a defesa da ordem pública e o assegurar aos cidadãos a tranquilidade necessária ao desenrolar pacífico das suas vidas e das suas actividades deverá nortear toda a atitude do Sistema de Justiça no qual se integram as Forças de Segurança, reforçando todos os meios ao seu alcance para que a sua função preventiva seja exercida com a máxima eficiência.
A visão da Prisões e da Reinserção Social
• Temos os estabelecimentos prisionais que os cidadãos consentem.
• A prisão é a forma mais categórica de exclusão que a Lei permite. Mas quem alimenta as prisões são as grandes faixas das exclusões da nossa sociedade. Mais do que num mundo global, estamos num mundo repartido entre os que podem usufruir e os excluídos socialmente, e estes são os que enchem as nossas prisões.
• A prisão imprime nos reclusos um estigma de posto à parte, nos limites de cada cela, com os minutos de cada dia estritamente regulamentados, assim como o relacionamento com o mundo exterior. Na prisão coexistem, contradizendo-se, dois princípios, o punitivo com ênfase no castigo e no constrangimento e o reabilitativo que procura reeducar, reajustar, reparar. A passagem por estas instituições segregativas traz aos reclusos grandes dificuldades de inclusão quando regressam à sociedade.
• Coloca-se, assim, a necessidade de atacar, na sociedade, as causas da exclusão numa perspectiva de longo prazo, o que não significa que não se actue de imediato. As causas são de vária ordem predominando as económicas e sociais. Dever-se-á pensar à escala de algumas gerações; mas os primeiros passos, que se exigem determinados, têm de ser dados já e acompanhados por pequenos ajustamentos, à escala do projecto global, que incluem a reparação dos erros urbanísticos, já atrás referidos, e a educação, ocupação e o acompanhamento das camadas mais jovens desta população agora marginalizada.
• O actual modelo prisional é um modelo violento, quer para os presos, quer para quem lá trabalha e para a própria sociedade. Quem lá entra para cumprir uma pena sente-se em exclusão total porque não está ainda integrado no novo mundo a que chegou e é obrigado a cortar os laços com o mundo que acabou de deixar. Atravessa fases sucessivas de ruptura e ajustamento, vivido de forma diferente conforme os diversos perfis psicológicos dos reclusos, mas sempre violenta ou, pelo menos, de elevada tensão, e com grande sofrimento. Dada a prevalência do punitivo sobre o reabilitativo a prisão tenderá a produzir mais inadaptados do que reabilitados.
• Terá de haver consciência de que a prisão “trabalha” um único tipo de delinquência. No entanto, na prisão, coexistem, em cada momento, vários tipos de delinquência e cada uma delas tem de ser enfrentada e trabalhada de forma diferente e encontrada, para cada caso, a actuação mais adequada. Isto pressupõe investigação, conhecimentos, escolha do tratamento próprio para uma verdadeira reabilitação de cada recluso. Para tal são necessários meios, em qualidade e quantidade, para que a sociedade deixe de encarar a prisão como a sua porta dos fundos que todos ignoram mas a que, simultaneamente, se pede tudo. É preciso que a sociedade encontre formas de forçar a adaptação do sistema prisional aos tempos de hoje e que o integre, cada vez mais, no processo de reduzir as exclusões que a afligem, dando-lhe um sentido útil e humanitário.
• Aqui a reinserção social tem um papel fulcral a desempenhar. Não se deverá esquecer que reinserir tem duplo significado: arrumar e semear. Com estes dois objectivos em vista deverá ser traçado o programa para uma verdadeira reinserção, abarcando o período de reclusão e de um acompanhamento após o cumprimento da pena.
• Neste programa deverá ser observado, em cada caso, o justo equilíbrio entre o apoio e o controlo do visado, o que, em cada momento, faz a diferença entre uma intervenção ajustada, produtiva e eficaz do ponto de vista da reinserção, ou uma actuação ineficaz ou, mesmo, violenta. Cada uma destas duas facetas deve ser tão completa quanto possível e, aqui, em especial no apoio, está o cerne de toda a acção, pois um apoio desajustado, por exíguo, pode por em causa todo o esforço de reinserção.
• Neste contexto se coloca o papel que pode desempenhar a família e todas as outras instâncias de socialização que é possível convocar para este processo de reinserção, eliminando os ambientes disfuncionais e o vazio relacional que, em primeira instância, conduziram ao comportamento desviante que produziu a violência.
Destas reflexões poder-se-á concluir que as “armas” da violência são variadas, muito disseminadas na sociedade, de grande eficácia e muito resistentes à sua erradicação.
A luta contra a violência e, acima de tudo, a prevenção da violência é um exercício muito complexo que não pode ficar entregue apenas a um ou dois actores principais como por exemplo as forças de segurança ou o Sistema de Justiça, desde as Leis até às prisões e à reinserção social.
É uma causa que tem de ser tomada por toda a sociedade levando-a a olhar com profundidade para o que está mal nela e no seu funcionamento, e dar-lhe plena consciência para o que há a corrigir de imediato.
Só assim se poderá ir ao fundo do problema e, elegendo-o como verdadeiramente prioritário, guiar o esforço de toda a sociedade, Estado incluído, nas múltiplas facetas a convocar, para o resolver responsavelmente.
17.5.2010