A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Rosalia de Castro (1837-1885) nasceu em Santiago de Compostela e morreu em Padrón, sendo justamente considerada a fundadora da literatura galega moderna. 17 de Maio, data da publicação de “Cantares Gallegos” em 1863, é o “Dia das Letras Galegas”. Esta obra constitui, aliás, o primeiro livro escrito em galego numa época em que a língua galega deixara de ser usada como idioma escrito e literário. Muitos poemas deste livro são glosas de cantigas populares, onde a autora procura ir ao encontro das tradições, também denunciando as dificuldades a que estava sujeito o seu povo. Oiçamo-la: “Así mo pediron / na beira do mar, / ó pé das ondiñas / que veñen y van. / Así mo pediron / na beira do rio / que corre antre as herbas / do campo frorido” ou “Nas portas dos ricos, / nas portas dos probes / qu’aquestes cantares / a todos responden”. No entanto, Rosalia soube sempre associar o seu testemunho pessoal, os seus sentimentos e o seu talento literário na sua rica criação. A cada passo, sentimos a memória de uma sociedade antiga, onde a alegria e a simplicidade se aliam à melancolia e à lembrança.

A VIDA DOS LIVROS
de 24 a 30 de Maio de 2010


Rosalia de Castro (1837-1885) nasceu em Santiago de Compostela e morreu em Padrón, sendo justamente considerada a fundadora da literatura galega moderna. 17 de Maio, data da publicação de “Cantares Gallegos” em 1863, é o “Dia das Letras Galegas”. Esta obra constitui, aliás, o primeiro livro escrito em galego numa época em que a língua galega deixara de ser usada como idioma escrito e literário. Muitos poemas deste livro são glosas de cantigas populares, onde a autora procura ir ao encontro das tradições, também denunciando as dificuldades a que estava sujeito o seu povo. Oiçamo-la: “Así mo pediron / na beira do mar, / ó pé das ondiñas / que veñen y van. / Así mo pediron / na beira do rio / que corre antre as herbas / do campo frorido” ou “Nas portas dos ricos, / nas portas dos probes / qu’aquestes cantares / a todos responden”. No entanto, Rosalia soube sempre associar o seu testemunho pessoal, os seus sentimentos e o seu talento literário na sua rica criação. A cada passo, sentimos a memória de uma sociedade antiga, onde a alegria e a simplicidade se aliam à melancolia e à lembrança.



CRÓNICA DE UMA VIAGEM A SANTIAGO
Vim a Santiago a convite da Faculdade de Filologia, graças à simpatia da Reitoria da Universidade e da cátedra UNESCO de literatura portuguesa, e ao empenhamento e amizade de Maria Isabel Morán Cabanas. E escolhi para falar o tema da convergência de identidades culturais e linguísticas. Ao visitar a Catedral, comecei logo por ouvir Rosalia de Castro: “O Sol poniente, polas vidreiras / da Soledade, lanza serenos / rayos, que firen descoloridos / da Gloria os ánxeles i o Padre Eterno. / Santos e apóstoles, védeos!, parece / cos lábios moven, que falan quedo / os uns cos outros, i aló n’altura / do ceu a música vai dar comenzo, / pois os gloriosos concertadores / tempran risoños os instrumentos” (Follas Novas, 1880). Perante o Portal da Glória, apesar dos andaimes das obras, senti uma especial reverberação. Era a poesia antiga que vinha ter comigo naquela manhã muito fria de Março, em que o sol matutino anunciava um dia glorioso. As culturas afirmam-se pela diversidade e pela capacidade de gerarem caminhos diferentes susceptíveis de se enriquecerem mutuamente. A Galiza é um ponto de encontro e um ponto de partida. E em Santiago de Compostela, campo das estrelas, lembramos a importância do caminho de peregrinação, como símbolo de convergência de diversas origens. E há uma vocação europeia (e universalista) neste encontro de várias línguas e de várias culturas. A relação galaico-portuguesa tem assim a virtualidade de superar a suspeita e a simplificação, de que falava Miguel de Unamuno, compreendendo a diversidade histórica, entendendo que há caminhos diferentes que visam um património comum, cultural e linguístico, além de se inserir num mundo complexo das culturas múltiplas geradas nesta língua comum de peregrinos e trovadores. Lembramos Martim Codax, Afonso X, Meendinho (da ermida de S. Simão da ria de Vigo), mas também Rosalia de Castro, Curros Enriquez, Eduardo Pondal ou o Padre Feijó – e encontramos raízes antigas que nos projectam no futuro. E a lusofonia conduz-nos a várias culturas que se desenvolvem e enriquecem mutuamente. No tempo em que o multilinguísmo está na ordem do dia e deve ser desenvolvido, a afirmação da língua e das literaturas vindas do galaico-português exige mais conhecimento mútuo e vontade comum. E quando Fernando Pessoa fala da pátria como língua, o que reclama é o dever de comunicação e a responsabilidade de uma “memória criadora”.


GALAICO-PORTUGUÊS OU GALEGO-PORTUGUÊS
Falar do galaico-português é lembrar as origens da língua com que nos exprimimos, e recordar uma história cultural que nos leva a raízes muito antigas vindas da Europa da reconquista e, mais do que isso, que nos conduz a um diálogo com os povos peninsulares, desde o império romano aos berberes e árabes até à cultura moçárabe, passando pelo cadinho que nos caracteriza. E é extraordinário ver como esta língua do ocidente peninsular se tornou universal, com mais de duzentos milhões de falantes. É aqui que temos de assumir que, no atlas mundial das línguas, o português e o castelhano são hoje poderosos aliados e não concorrentes. São ambas línguas em crescimento, têm zonas de desenvolvimento bem definidas, afirmam-se culturalmente em espaços ricos e diversificados, sendo línguas de várias culturas, com literaturas pujantes e com um valor indesmentível, social e economicamente. Num mundo onde o multilinguísmo terá uma importância cada vez maior, e em que o domínio de uma língua franca como o inglês básico não pode confundir-se com a riqueza e as potencialidades culturais da língua inglesa, importa compreender que as políticas das línguas de projecção universal obrigam a que haja cooperação e complementaridade, em nome da educação, da cultura, da ciência e da paz. Urge, pois, que haja o reforço de caminhos comuns, para que cada língua e as diferentes culturas afirmem as virtualidades de uma sociedade aberta, plural, cosmopolita e assente na dignidade humana. A educação para todos, que a UNESCO preconiza, a difusão do espírito científico, a aposta na comunicação e na criatividade, o respeito mútuo e o diálogo entre culturas têm a ver com estas preocupações. Olhe-se o tema da promoção da leitura, atente-se no desenvolvimento do acesso aos meios de comunicação, desde os tradicionais às novas tecnologias, encarados como meios e não como fins, enalteça-se a relação entre as diversas formas de criação contemporânea – desde a literatura à música, à dança, às artes plásticas, à arquitectura -, tudo deve hoje ser aproveitado para enriquecer a cultura como criação, a Paideia grega, a Humanitas latina, a Bildung germânica e a aprendizagem, como exemplo e experiência… Património, herança e memória ligam-se intimamente, o que recebemos e transmitimos é enriquecido pelo acto de aprender e pela arte de criar. As pedras mortas dos monumentos e do património material, as pedras vivas da cultura humana e do património imaterial, bem como a criação contemporânea ligam-se intimamente. E que melhor domínio senão a língua para podermos entender a força humanizadora da cultura? Da poesia trovadoresca à contemporaneidade, galegos e portugueses temos um património imaterial comum – a alma e a língua. Oliveira Martins, em 1891, dizia, aliás a Salvador Cabeza Léon: “o português não é outra coisa senão o galego que tomou caracteres próprios com a cultura principalmente quinhentista. Antes as duas falas não se distinguem. Tenho aqui, sobre a mesa, as Cantigas de Santa Maria de Afonso o Sábio, na magnífica edição da Real Academia Espanhola, e comparando esse monumento com os cancioneiros e crónicas coevas de Portugal, vê-se a identidade da linguagem”. As raízes comuns, os pontos de aproximação são inequívocos. Vem da poesia galaico-portuguesa a linhagem que nos leva a Camões, a Francisco Manuel de Melo, a Vieira, a Garrett, a Herculano, a Rosalia, a Eça, a Machado de Assis ou a Pessoa – mas que também nos aproxima de Cervantes, de Góngora, de Calderón ou de Perez Galdós…


LUSOFONIA, VISTA DE COMPOSTELA
A lusofonia vista de Santiago de Compostela não pode, assim, deixar de ser um lugar de projectos comuns. Temos de definir uma esfera de compreensão e comunicação – e esse é o espaço universal onde a língua comum se pode afirmar. E há um continente imaterial disperso pelos vários continentes que tem de ser desenvolvido através da cooperação cultural e científica. Afinal, se há modulações diversas na língua comum devemos aproveitar essas diferenças para nos enriquecermos mutuamente. Como diria Maria Zambrano, a língua faz parte da metáfora do coração que temos de cultivar… 


CITAÇÃO
“Ben sei que non hai nada / novo embaixo do ceo, / qu’antes outros pensaron / as cousas qu’ora eu penso. / E ben, para que escribo, / e ben porque assí semos / relox que repetimos / eternamente o mesmo”. De “Cantares Gallegos”, leia-se a edição de Ricardo Carballo Calero, da Cátedra, Letras Hispânicas, Madrid, 2001. De “Follas Novas” (1880), veja-se edição de Henrique Monteagudo e Dolores Vilavedra, Editorial Galáxia, Vigo, 1993.


Guilherme d’Oliveira Martins

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