NO RASTO DE HERÓIS
Quando soube que o meu amigo Camilo Martins de Oliveira (1942-2022) tinha partido, veio-me à lembrança, imagem por imagem, a maravilhosa viagem que em 2010 fizemos ao Japão, sob a sua coordenação, acompanhados de José Tolentino Mendonça e de José de Guimarães. E fui reler o pequeno livro que escreveu, cheio de boas recordações, Fomos em Busca do Japão. Partimos no rasto de Fernão Mendes Pinto, de Francisco Xavier e de Wenceslau de Moraes e ainda hoje sentimos o peso de um conhecimento ancestral, já que os portugueses foram os primeiros europeus a ter contacto com o Japão, quando em 1543 três naufragaram em Tanegashima e deram a conhecer a primeira arma de fogo. Conheci Camilo Martins de Oliveira, ao longo de quase cinquenta anos, como bom amigo e exemplar diplomata no campo económico. A primeira vez que nos encontrámos foi em Bruxelas e com ele comecei a percorrer os corredores comunitários. O seu currículo já merecia atenção. Como católico inconformista, foi em 1965 um dos subscritores do Documento dos 101 contra a ditadura. Na Morais e em “O Tempo e o Modo” traduziu e publicou Teilhard de Chardin. Depois de ter estado na Guiné como alferes, veio trabalhar em 1969 com Rogério Martins, então Secretário de Estado da Indústria, tendo tido papel relevante no fim do condicionamento industrial e do protecionismo. Depois seguiu-se um percurso notável no exterior: como delegado na OCDE, diretor da Missão Comercial em Bruxelas, perito em Missões das Nações Unidas, representante económico nos Estados Unidos e depois em Tóquio (1987-2001), com funções no Japão, Coreia do Sul e Nova Zelândia, sendo ainda Comissário Geral de Portugal na Exposição Universal de Aichi (Japão). Era um conversador extraordinário; num serão, começávamos por falar da história de um biombo Namban, continuávamos na reflexão sobre a arte contemporânea, muitas vezes com a presença discreta, mas agradabilíssima, do irmão Gaëtan Martins de Oliveira, e terminávamos discreteando sobre a economia, a política internacional, a integração europeia, e ainda história ou filosofia, tantas vezes em diálogo com António Sousa Franco, grande amigo comum. Além do mais, era um leitor insaciável, imbatível no conhecimento da última novidade literária.
VIAGEM FANTÁSTICA
E volto à lembrança dessa viagem fantástica. Quando chegámos a Quioto sentimos a tradição japonesa, como sinal de um povo antigo, sereno, amável e hospitaleiro. No bairro de Gion, que conhecíamos das narrativas e descrições romanescas, testemunhámos o desenho tradicional de uma antiga cidade nipónica. O movimento é intenso, os edifícios baixos e pequenos, em madeira, bem ordenados, assinalados com balões coloridos de papel iluminado e vemos geishas em trajes de função. As ruas são estreitas e limpas, a ordem e a organização imperam. A cada passo, as pessoas saúdam-nos com vénias, ora para nos convidarem a entrar, ora para nos agradecerem se lhes demos primazia no burburinho dos passeios. Era no Outono, uma das estações privilegiadas do Japão, e havia uma especial alegria e jovialidade no ar, mesmo que a noite já tivesse caído. Não havia humidade e a temperatura rondava os 12 graus. Ao passar pela zona dos teatros, recordamos a importância do Kabuki e a sua evolução. No restaurante Nishisaka, usufruímos a refeição de um delicioso shabu shabu, pequenas fatias de carne de vaca cozidas por nós em água a ferver, que Camilo Martins de Oliveira nos aconselhou, com aplauso geral. As árvores que rodeiam a cidade no Outono têm as folhas vermelhas ou amarelas. Wenceslau de Morais (1854-1929), cujos textos nos acompanham, lembra que «as espécies europeias não oferecem igual maravilha em colorido». Sentimos entusiasmo ao ver as grandes massas desta folhagem belíssima do “moimiji”. O Pavilhão de Prata, o Ginkaku-ji, literalmente apagava-se diante da natureza outonal pujante. Era a memória do xógum Yoshimasa, no século XIV, que estava presente, a partir da recordação de seu avô Yoshimitsu, que num gesto de suprema audácia, cobriu de folha de ouro o Pavilhão Dourado, o surpreendente Kinkaku-ji, celebrado por Mishima… O importante foi o enaltecer da natureza em toda a sua intensidade. O momiji tudo domina, parecendo dizer que a natureza culta, domada pelo ser humano, é dominada pelas folhas escarlate, como se fossem flores. Deambulamos pelas veredas do jardim, contamos as suas pedras, deslumbramo-nos com os musgos tratados, com as águas, com os lagos, com os jardins secos, com o saibro riscado ou a terra cuidadosamente penteada, a representar o mundo.
CAMINHO DOS FILÓSOFOS
Seguimos pelo caminho dos filósofos ou via dos mestres. Um canal ladeado de cerejeiras segue sinuoso pelo sopé das Montanhas Orientais e há muita gente que caminha, gozando a natureza, conversando, lendo ou simplesmente indo ao templo zen de Nanzen-ji. E recordamos Nishida Kitaro (1870-1945), professor da universidade de Quioto, que tornou este lugar obrigatório para a compreensão da cultura japonesa. Os tons vermelhos e amarelos das folhas do Outono inebriam-nos, o sol e o dia ameno contribuem para o nosso deleite. E com que esmero Camilo nos indicava todos os pormenores. Em Nanzen-ji aprendemos a lição «sê mestre da tua mente». A colossal Sanmon à entrada do recinto do templo demonstra estarmos num lugar essencial da cultura zen. O portão descomunal não tem um prego, foi erguido no século XVII apenas com encaixes que põem à prova a habilidade e a inteligência humanas. Tudo para consolar as almas dos que morreram no cerco do Castelo de Osaka. Nos aposentos do Abade do Convento deparamos com o célebre “Tigre a beber água”, obra-prima da pintura japonesa do século XVII de Tamyu Kano, além de uma intervenção de Kobori Enshu, com seixos e pinheiros num impressionante jardim seco. Na relação do tempo e do universo, sentimos o equilíbrio entre a arte e a natureza, nos jardins, nos seixos, nas representações, mas especialmente na cerimónia do chá, no templo de Kodai-ji. Tudo exige o domínio do corpo e o respeito, da tranquilidade, da pureza e da harmonia e a cerimónia do chá é um gesto litúrgico, como ficou demonstrado por Wenceslau de Moraes no clássico “O Culto Chá”. E Camilo Martins de Oliveira levou-nos para além da imaginação até ao âmago do encontro entre culturas e afetos, com as belas fotografias de José de Guimarães. Tratou-se de uma peregrinação que correspondeu a um desafio, para que conhecêssemos melhor o Japão… E ficou a lembrança viva de que “para o japonês, o que se procura, o que determina a entrega à contemplação, é o que não se vê. Olhar ou escutar – assistir a um concerto no Japão – é perceber como o silêncio é participante – torna-se, assim, mais do que um exercício de sentidos, uma extensão da alma. E é esse olhar ou escuta da alma que traz a obra de arte – cheia do mundo invisível e inaudível para o convívio quotidiano”.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença