Reflexões

De 23 a 29 de Fevereiro de 2004

Precisamos de lembrar as mil aventuras dos portugueses em peregrinação pelo mundo. Um património cultural vivo obriga-nos a maiores atenções dadas às nossas memórias – especialmente em relação ao diálogo entre as diferentes tradições e religiosidades…

Precisamos de lembrar as mil aventuras dos portugueses em peregrinação pelo mundo. Um património cultural vivo obriga-nos a maiores atenções dadas às nossas memórias – especialmente em relação ao diálogo entre as diferentes tradições e religiosidades. Branca Dias é agora motivo para uma extraordinária “lusografia” da autoria de Miguel Real (“Memórias de Branca Dias”, Temas e Debates, 2003). Mas quem foi Branca Dias? “Historicamente quase nada se sabe da sua vida, e o que se sabe provém das fontes indirectas, nomeadamente da prisão de alguns dos seus filhos e netos, enviados para Lisboa, após a estada do primeiro visitador da Inquisição em Olinda…” Nascida em Viana do Castelo na foz do Lima, denunciada por práticas judaizantes pela mãe e pela irmã, presa pela Inquisição em Lisboa, a protagonista, depois de confessar os actos e o culto judaico e de se comprometer a renunciar a eles, embarca para o Brasil com sete filhos, juntando-se ao marido, Diogo Fernandes, cristão-novo, comerciante grossista de tecidos. Vivem entre Camaragibe e Olinda. Pondo-se-lhe o dilema entre Amsterdão e o Brasil prefere correr os riscos do novo continente, para poder ganhar mais, por míngua de concorrência. Em Olinda, nascem mais quatro filhos. Branca estabelece-se na Rua dos Palhais, atrás da matriz do Salvador, onde abre em casa um pensionato destinado às filhas dos colonos, onde lhes ensinava “prendas domésticas”. E serão essas filhas de colonos a denunciá-la pelas práticas da religião hebraica. Branca morre por volta de 1588 e, pouco depois, chega a Olinda, como ela previra, o visitador da Inquisição. Este apura que Branca Dias e a família se tinham reconvertido ao judaísmo, contra as juras antigas. Os castigos não se fazem esperar e presume-se que até os ossos de Branca Dias tenham sido então enviados para Lisboa para serem queimados no Rossio. Branca confessa, pouco antes de morrer, que “o grande feito que tiro da minha vida nestes anos no Brasil é que quase fui feliz, quase todos pudemos ser felizes, mas só quase, abriu-se uma brecha na porta do mal que nos permitiu quase sermos felizes, nós, judeus, eles, cristãos, quase fomos todos felizes, mas o pau-brasil e o açúcar, a ganância do ganho e do lucro, vieram estragar tudo; agora fala-se em ouro e prata, esmeraldas e diamantes, lá para as terras depois do S. Francisco, em Mariana, Ribeirão do Carmo e em Curral d`El-Rei; a ganância dos cristãos está estragando o Brasil, matam os índios, traficam os pretos para cortarem o pau-brasil e explorarem o açúcar, já quase não há árvores do pau-brasil no Pernambuco, e o açúcar acabará um dia, talvez venham aí minas de ouro, ainda será pior…” No romance de Miguel Real, Branca Dias rememora a sua vida. E dessa maneira descobrimos uma outra dimensão desconhecida e fantástica da presença portuguesa no mundo… A não perder.

Guilherme d`Oliveira Martins

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