AMOR, SERENIDADE E PAZ
René Dubos disse um dia que “as descobertas que condicionarão o futuro não hão de vir do conhecimento do que se passa na célula, na bioquímica, na ciência ou na técnica, mas daquilo que nos ajude a compreender os mecanismos centrais que condicionam a afetividade”. O amor, a serenidade e a paz têm de ser cultivados. Mas como integrar tudo isso nas nossas relações para que “a violência, a astúcia e a agressividade não sejam moeda de troca das relações humanas”? O valor dos afetos permite a passagem lenta e segura da natureza à cultura… E no entanto, perante o cenário de guerra, de incerteza e de violência, que nos rodeia, somos levados a descrer. Eis, por que razão Edgar Morin apela, do alto de um século de vida, para que acordemos da terrível letargia que corrompe o mundo e a vida. “Repara que o Evangelho não nos manda amar a humanidade, mas o próximo. E isto porque a humanidade é uma abstração” – disse Lanza del Vasto, um dia, a António Alçada Batista. E o certo é que de tanto se falar de crise, quase nos esquecemos do que devemos fazer para compreender quem está connosco e da necessidade de combater a indiferença. Mais importante do que os tratados de edificação moral é a vida prática e os exemplos colhidos nela, o saber de experiências feito. O anti-herói Fernão Mendes Pinto e as suas mil peripécias, voluntárias e involuntárias revelam muito melhor o inesperado sentido da vida do que a tentação de nos levarmos demasiado a sério. O Quincas Berro d’Água de Jorge Amado, apesar de parecer aos nossos olhos de europeus um caso de compaixão, desperta-nos para a esperança e para o gosto de viver. E a poesia de Alexandre O’Neill dá-nos o outro lado da realidade, com ironia e non sense, em nome da busca muito séria de sentido – “é tempo de unir o mesmo gesto/ o real e o sonho…/É tempo de acordar nas trevas do real/ na desolada promessa/ do dia verdadeiro”.
LEMBRAR UM MUNDO DE AVENTURAS
António Alçada Baptista recordava, tantas vezes, a lembrança das aventuras de Sandokan ou de Texas Jack, porque é bom que tenhamos a cabeça povoada de imaginárias aventuras, as mesmas que nos levam a compreender e a amar intensamente as pessoas. Por isso, costumava dizer: “tenho a certeza que Kierkegaard não teria escrito “O Desespero Humano” se tivesse nascido na Bahia, nem o Jorge Amado o Quincas Berro d’Água se fosse dinamarquês”. E Eduardo Lourenço diz que “é para trazer à luz, mostrar aos outros, e a si mesmo, o que ainda não era visível, palpável, audível, que a obra nasce” (“O Tempo e o Modo”, n.º6, Junho 1963). Eis a chave da cultura como criação e da compreensão dos sinais dos tempos, em nome do respeito da dignidade humana. Devemos remar contra a maré. Esse o sentido da obrigação de compreender e conhecer o mundo e a vida. Segundo um cuidado saber náutico, António Alçada sempre achou que se todos se juntam a bombordo ou a estibordo, a embarcação naufraga. É sempre indispensável que alguém fique do outro lado, mesmo que as incompreensões continuem. Assim como assim… Por isso, tantas vezes foi incompreendido. E a verdade é que só deixaremos de ser sonâmbulos (na expressão de Broch) se nos dispusermos a fazer da liberdade e do bem comum os indicadores estáveis das nossas bússolas. Assim, o autor da “Peregrinação Interior”, em vez dos banquetes de sabedoria pura, contrapunha o diálogo dos afetos, com elevação e inteligência, seguindo a lição de Denis de Rougemont. Afinal, é de sabedoria que se trata. Por isso, invocava Borges: “Creo que un dia mereceremos que no haya gobiernos”. E insistia: precisamos de o merecer. E oiçamos a romanesca tia Suzana: “Julgo que o mais importante são as palavras. Quando se vive a solidão, sabe-se que, por causa duma palavra verdadeira, caem muitas vezes as muralhas que levantámos à volta das nossas almas. Uma palavra verdadeira pode ser um milagre: é a solidão derrotada”. Apesar das suas depressões cíclicas, a verdade é que foi sempre a busca das palavras (e das pessoas que as proferem e que buscam nelas sentido) que ocupou António Alçada, para nos levar à compreensão do tempo e do mundo. Como nos disse, temos de ter o cuidado de compreender que “a verdadeira relação com Deus – como Deus é um ser superior, e os que se dedicam a isso, seres superiores”, não pode limitar-se às ideias, aos silogismos, às lógicas, às abstrações, porque uma teologia abstrata é uma idolatria.
COMPREENDER A CULTURA
Compreender a cultura? Mas não é a cultura a capacidade de melhor entender a humanidade? Eis que temos de ser claros! Edgar Morin volta a apontar-nos o caminho: «Só podemos pensar o futuro, se estivermos conscientes do passado e do que se passa no presente. (…) E hoje o futuro depende dessas grandes correntes que atravessam a Humanidade e que são ameaçadoras e regressivas. Portanto, é urgente pensar o futuro. (…) É preciso estar vigilante. É preciso esperar o inesperado para saber navegar na incerteza. Há toda uma série de reformas e modos de pensar e de se comportar, que são hoje necessários». Uma celebração, qualquer que seja, centrada apenas no passado torna-se vazia e inútil. Compreender a cultura é procurar perceber o tempo e o futuro, mas sobretudo entender que, longe das idolatrias, devemos cuidar da dignidade do ser.
Guilherme d’Oliveira Martins
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