UMA TRADIÇÃO NACIONAL
Comecemos pelo princípio. O livro de hoje é uma crónica gráfica. «A tradição nacional desta linha de fino humor é forte – vem de Bordalo a Carlos Botelho, de Sam a Luís Afonso, por exemplo. No caso de André Ruivo (como no de Bordalo) o leve desvio / deslocação do ponto de vista que provoca a situação humorística não é apenas detetável no discurso escrito mas é também visualmente acentuado pelas perspetivas urbanas, as vistas de janela, as distorções anatómicas». Quem o diz é João Pinharanda, compreendendo que, mais de dois anos depois do início da pandemia, e quando a espada de Dâmocles continua sobre a nossa cabeça, é necessário iniciarmos a tarefa de tirar conclusões sobre um estranho tempo em que nos vimos envolvidos e que, por certo, voltará a repetir-se. Estamos longe de estar libertos de confinamentos, quarentenas, distâncias, máscaras etc. No fundo, fomos nós que desarranjámos a máquina do mundo. A capa do livro é bastante clara, ao pôr-nos perante um rosto velado que esconde o seu sorriso, ou será riso ou será agastamento e raiva? É estranho que não venhamos apresentar o essencial deste livro com episódios caricatos sem o desenho inicial de uma boca a sorrir-se. Afinal, quando lemos o velho “Album das Glórias”, lá encontrámos Rialto, Ribaixo, Ripouco… Aqui, nem muito nem pouco, nem assim-assim, apenas um boneco enigmático, sem sombra de riso, tapado por uma máscara. Tão só um olhar espantado, e tudo o mais nos vai intrigar, quando começamos a folhear o livro.
O QUE AINDA FALTA
«Falta talvez um desenho nesta série. E poderia ser mais um auto-retrato, onde se visse o autor injetando grandes doses de humor através das finas agulhas dos seus desenhos. Na realidade cada desenho deste livro é uma dessas doses. A toma não é intravenosa mas ocular. As doses administradas pelo artista parecem homeopáticas, tal é a leveza de cada cartoon, mas cada um deles é um poderoso projétil lançado pelo farmacêutico Ruivo, que é cientista sem diploma, e que não usa as pessoas como cobaias mas como amostras do tecido social, como casos de estudo». É ainda João Pinharanda, o crítico contaminado (pelo vírus ou pelo humor?), quem insiste na caracterização deste contributo vacinal, uma vez que ao vermo-nos tantas vezes ao espelho nesta reunião de comentários ilustrados percebemos que o nosso lado picaresco é dos mais importantes que devemos cultivar. Carlos Botelho dava os seus “Ecos da Semana” com leituras quotidianas desenhadas de estórias que todos os dias a cidade protagoniza. Leitão de Barros fazia, assim, os seus “Corvos”. E em cada apontamento, em cada desenho, encontramos oportunidade para muitas lembranças e para uma dose apreciável de paciência e de sentido de ridículo, que tantas vezes esquecemos, por nos levarmos demasiado a sério. Démos vários exemplos, clássicos e para levar muito a sério, mas o mais importante é compreendermos que o quotidiano dá-nos mil oportunidades para fazermos da realidade uma verdadeira oportunidade para nos desmancharmos a rir. Poderíamos ainda lembrar Stuart de Carvalhais, Almada Negreiros, Emmérico Nunes, Francisco Valença, António Antunes, João Fazenda… Mas atenhamo-nos a este livro e aos seus episódios. Nós, os leitores, somos contaminados gostosamente com este vírus, que André Ruivo nos transmite, por transmissão ou como vacina com várias doses de reforço. E, ao mesmo tempo, não só contraímos este vírus, certamente benigno, mas também ganhamos o saudável sentido de nos sentirmos desprotegidos e ridículos, cientes de que este humor funciona como verdadeiro anti-corpo, homenagem ao Dr. Jenner e à sua fantástica capacidade de compreender como uma pobre vaca (com as mulheres que a ordenhavam) se tornou salvadora de muitas vidas pela inoculação vacinal do vírus. Também André Ruivo desejou. A janela permitia fazer amigos. E dentro de casa, todos fomos percebendo, que não foi apenas a família que foi confinada, mas também uma grande Arca de Noé de pequenos bichos, como baratas e percevejos, pulgas e tudo o imaginável, que povoam os cantos das nossas casas e de que tardiamente nos apercemos. Eis um dos efeitos do confinamento. Liberdade para respirar o ar da cidade, para transportar os alimentos, para sair a passear o animal de companhia, percebendo que nós é que somos a sua companhia, e que a bicharada torna-se pretexto para podermos pôr um pé na rua. O nariz de fora merece especial atenção, pois de nada serve. É como trazer a máscara na barba. É um adereço inútil. E os milhares de especialistas merecem atenção, não pelo que nada dizem, mas por terem aparecido como gafanhotos com estantes psicadélicas nas suas costas. Alguém pergunta policialmente: “E o senhor que faz na rua?” – Eu? Deve ser confusão… – Hoje fui à Rua! Foi cá uma emoção! – “Não se fechem demasiado”. “Que dia é hoje?” – Estou completamente perdido. “E o que é abraçarmo-nos a nós próprios?” – Mas quem mete medo ao vírus? E o Doutor pergunta: Onde lhe dói? – “Nas orelhas Senhor Doutor”. E que máscara usa? A do Carnaval ou a do vírus? Mas o Carnaval já passou há muito. Os diálogos sucedem-se, cada um mais estranho do que outro… E as estatísticas falsas e as datas verdadeiras misturam-se como dados imaginários. Qual a diferença entre teletrabalho e televida? Ou será vice-versa? André Ruivo explica exaustivamente.
Guilherme d’Oliveira Martins
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