A VIDA DOS LIVROS
de 19 a 25 de Abril de 2010
“História do Ensino em Portugal” de Rómulo de Carvalho (Fundação Calouste Gulbenkian, 1986) é uma obra fundamental para a compreensão e conhecimento da evolução da Educação entre nós. Com o rigor a que sempre nos habituou, o pedagogo e o investigador (que também foi um dos maiores poetas do século XX) põe neste livro as suas qualidades, o que permite ao leitor usufruir de uma informação clara, pormenorizada e esclarecedora – que ultrapassa largamente os limites propostos, permitindo-nos ter uma visão abrangente e rigorosa da evolução das mentalidades, do ensino, das escolas e da pedagogia ao longo do tempo.
ESCOLA DE CIDADÃOS
Rómulo de Carvalho confessa na nota que elaborou para anteceder este livro que durante muito tempo sentiu na sua actividade docente a falta de um estudo como este, indispensável para uma melhor compreensão não só da evolução das concepções sociais, mas também das referências pedagógicas e didácticas. Assim, procurou seguir os acontecimentos e as políticas desde os primórdios da nacionalidade, sendo particularmente atento às questões ligadas à formação dos responsáveis, nos domínios mais relevantes da vida social e económica, desde o mundo eclesiástico, onde de desenvolveram as escolas monásticas e as Universidades, até à carreira das armas, passando pela Administração Pública. Sem possibilidade de fazer aqui uma apreciação global da obra, com grande cópia de elementos, rigorosamente coligidos, ater-nos-emos apenas à análise sucinta dos dois últimos séculos no tocante à ligação entre escolarização e formação cívica. Desde a profunda reforma de Sebastião José de Carvalho e Melo e das revoluções liberais do século XIX, designadamente com a extinção das ordens religiosas, houve que conceber um sistema educativo público, a começar no ensino primário, que pudesse preencher o vazio existente, num País com uma elevadíssima taxa de analfabetismo (82,4 % em 1878; e 78,6 % em 1900). O ambicioso projecto de Luís Mouzinho de Albuquerque (1823), a relevante intervenção de Almeida Garrett aquando da vitória liberal (1834), as medidas legislativas de Rodrigo da Fonseca (1835), elogiadas por Alexandre Herculano, as reformas gerais de Passos Manuel (1836), que levariam à criação do ensino secundário (de 5 anos, apenas efectivado em 1840), e de Costa Cabral (1844) são marcos fundamentais de ordem estrutural, que esbarraram na falta de meios e na instabilidade política que caracterizou a monarquia constitucional pelo menos até à Regeneração (1851).
O PESO DOS CONSTRANGIMENTOS
De facto, sem condições propícias nos domínios da organização e das finanças públicas muito pouco foi possível fazer para além do quadro legislativo. Garrett em “Da Educação” fala da “educação nobre” ligada às Humanidades, desvalorizando as Artes mecânicas, e dando importância às artes liberais ou belas-artes. Herculano, muito crítico, diz que os objectivos nacionais devem ser “instrução geral elementar, instrução geral superior” como fundamentos da “futura felicidade do país, da felicidade do Estado e dos indivíduos” – ligando “o eu e o não eu social “que parecem opostos, mas que a filosofia sabe reunir e harmonizar”. E António Feliciano de Castilho propõe, perante muitas incompreensões, o “método repentino de leitura”, tornando-se o Comissário Geral do mesmo (1853), como modo de favorecer a alfabetização e a instrução primária elementar. Por outro lado, o republicanismo, animado pelos acontecimentos europeus de 1848, afirma pela pena de Henriques Nogueira (autor dos “Estudos sobre a reforma em Portugal”, 1851) defende a “educação popular”, as escolas locais, o ensino de adultos e as escolas industriais, como forma de “melhorar a sorte dos deserdados da fortuna”, numa lógica de “governo do Estado” feito “pelo povo e para o povo, sob a forma nobre, filosófica e prestigiosa da República”. Em plena Regeneração, Fontes Pereira de Melo, sob o influxo das ideias de Saint Simon, aposta nos ensinos técnico, industrial, agrícola e comercial – enquanto o ensino liceal se vai estabilizando, com as reformas de 1860 (do próprio Fontes), de 1863 (de Anselmo Braancamp) e de 1868 (com o Bispo de Viseu, prevendo um ensino secundário para 6 anos). Em 1870, D. António da Costa torna-se Ministro da Instrução Pública, o primeiro, reactivando as Escolas Normais para a formação de professores primários e defendendo a descentralização e educação feminina. As duas décadas seguintes serão dominadas por alterações legislativas, que visam dar corpo ao que até aí tinha sido teorizado: Rodrigues Sampaio (1872-1878); António Augusto de Aguiar, com o ensino técnico; José Luciano de Castro com as reformas de 1880, 1886 e 1888, passando o curso complementar dos liceus a ter duas vias. Contudo, em 1894, Jaime Moniz vai concretizar uma profunda e muito influente reforma no ensino liceal, que passa a ter a duração de sete anos e que vai ter repercussões decisivas nas décadas seguintes.
EDUCAÇÃO REPUBLICANA
A implantação da República (1910) vai ser marcada por uma evidente afirmação ideológica desde as origens, ainda que haja uma certa continuidade com o constitucionalismo monárquico, até pelo facto de muitas orientações dos reformadores liberais (como Passos Manuel) serem partilhadas pelos novos governantes. João de Barros fala, porém, de “Educação Republicana” e defende que a reforma da nossa mentalidade teria de “basear-se num profundo e vasto amor à Pátria e à República. Amor que não seja somente a adoração pelos símbolos que nestas palavras se contêm, mas ternura, carinho e paixão pelas realidades admiráveis que elas significam”. Seria, assim, necessário “republicanizar o país”, a começar nas escolas. A ideia de uma cidadania activa vinha de trás das grandes referências intelectuais do século XIX, como Garrett, Herculano, mas também Antero de Quental ou Guerra Junqueiro e estava presente no magistério de Trindade Coelho (1861-1908) no seu “Manual Político do Cidadão Português” de 1906. Havia agora que mudar de rumo e lançar a semente à terra. A orientação da Renascença Portuguesa, movimento intelectual do Porto, com raízes no 31 de Janeiro, que publica a revista “A Águia”, vai nesse sentido. Aí António Sérgio escreve o fundamental livro “Educação Cívica”, onde projecta em Portugal o ensinamento de John Dewey. Todavia, a primeira medida “educativa” do novo regime vem do Ministério da Guerra e é a “instrução militar obrigatória”, que o pedagogo Adolfo Coelho critica severamente. À parte esse epifenómeno, já aparecido antes (em 1881, por influência de Elias Garcia, em Lisboa), a primeira reforma é de António José de Almeida (29 de Março de 1911), – prevendo o ensino infantil e três níveis de ensino primário – elementar (3 anos), complementar (2 anos) e superior (3 anos). Esta gerará forte polémica, e a demissão de João de Barros como titular da Direcção-Geral da Instrução Primária, em virtude de o ministro ter alegadamente descaracterizado a reforma. João de Barros regressará às mais elevadas responsabilidades na Instrução Pública dois anos depois, sendo o mais influente dos artífices da Educação Republicana. Apesar do diferendo, a reforma de 1911 é um instrumento muito importante, que a reforma de 10 de Maio de 1919 de Leonardo Coimbra consolidará e completará – fundindo os ensinos primário elementar e complementar no ensino primário geral, qualificado como obrigatório e abrangendo 5 anos. Insista-se no pioneirismo da reforma de 1911 quanto à educação infantil, que viria a ser concretizada nos Jardins-Escola João de Deus, segundo o método lançado em 1876 pelo poeta, de iniciativa privada, graças à acção de João de Deus Ramos. Se o ensino primário foi atentamente tratado, o ensino secundário (de cuja reforma foi encarregue Adolfo Coelho) foi subalternizado. Em 1918 ainda houve uma tentativa ambiciosa de reforma liceal no consulado sidonista com Alfredo de Magalhães, mas sem sucesso. Afinal, “os legisladores republicanos não tiveram, para com o ensino liceal, nenhum rasgo de audácia que de perto ou de longe equivalesse à reforma do ensino primário, embora boa parte desta não fosse além do desejo dos seus redactores” – no dizer de Rómulo de Carvalho. João Camoesas em 1923 ainda lançará a iniciativa de preparar o Estatuto da Educação Pública, para cuja elaboração convida Faria de Vasconcelos, pedagogo fundador da “Seara Nova”. O documento prevê: ensino infantil (dos 3 aos 6 anos), ensino primário, obrigatório, gratuito e em co-educação (dos 7 aos 12, com dois escalões de 3 anos cada) e grau secundário (dos 13 aos 16 anos). Haveria ainda quatro modalidades de educação especial: o curso especial do ensino secundário para acesso ao ensino superior (dos 17 aos 19 anos), o ensino técnico elementar (dos 13 aos 16 anos), o ensino técnico complementar (dos 17 aos 20 anos) e o ensino profissional. Jaime Cortesão dirá que é “não só o mais sério documento político emanado de um governo, dentro da República, como a primeira tentativa de reforma nacional orientada por um espírito democrático”. Também António Sérgio defenderá acaloradamente o documento (“Um dia a nação nos há-de julgar!”). Mas a queda do governo leva o Estatuto na voragem. Estamos perante um símbolo das dificuldades então vividas. Rómulo de Carvalho faz o balanço de um tempo em que a falta de meios e a instabilidade política não permitiu chegar aos objectivos pretendidos: “Não faltaram à I República os homens esforçados de quem se esperaria nos legassem melhor imagem da sua acção governativa”. Ao entusiasmo de muitos correspondeu a falta de estabilidade política, a ocorrência da guerra e as suas consequências depois de 1918, as crises económica e monetária, de que foi possível recuperar tecnicamente nos anos de 1924 e seguintes, no entanto a taxa de analfabetismo em 1930 muito pouco se tinha reduzido, para 67,8%…
Guilherme d’Oliveira Martins