“Palavras não existem / fora da nossa voz as / palavras não assistem / palavras somos nós”
Gastão Cruz, A Doença, 1963.
Um poeta que nos deixa, e ficamos mais sós no mundo. Há um poema de Gastão Cruz a que gosto sempre de regressar, uma vez que me recorda o Algarve que sempre conheci, de minha mãe e de meus avós, e de tantos amigos, muitos que já partiram. Quando percorro as ruas de Faro, não só lembro a “Gente Singular” de Manuel Teixeira Gomes, mas também, há muitos, muitos anos, o meu avô a dizer-me que ali encontrava o poeta Cândido Guerreiro. O título, “Faro, 1952”, tem a marca do ano em que nasci, mas lembra-me recordações de que ouvi falar ou que presenciei, ao longo dos tempos. Quando homenageámos em Querença Gastão Cruz no FLIQ, essas mesmas palavras soaram com especial intensidade e brilho: “O café, do outro lado a livraria / essa a meta / da tarde / quando esfria a pele / sem que / frio fique o dia, / as linguagens regressam às cúpulas / de folhas / e os treze noturnos ainda nos esperam…”. Quantas lembranças? E por isso este poema ainda ganha para mim maior sentido, já que é essa memória que aqui se recorda. “… Percorremos a rua / até onde entra nela a aragem da ria / e o café dum lado, do / outro a livraria, / à porta o chapéu largo e a barba / branca / dum poeta do passado”… Assim se ilustra bem a afirmação de Gastão Cruz sobre ser “poeta do real”, singularíssimo, na boa companhia de outros poetas como Sophia, Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Luiza Neto Jorge… De facto, cada um imprime na realidade que nos cerca uma marca especial de crítica e de confronto.
LEMBRAR A POESIA 61
Hoje podemos entender melhor a importância de “Poesia 61”. Não foi um cânone ou uma orientação, mas um encontro, em que houve uma procura de radicalidade por diversos caminhos. Luiza Neto Jorge disse ao “Diário de Lisboa”, em maio de 1961: “Parece-me que entre nós o surrealismo ainda terá razão de ser – como total destruição de cânones bafientos, como reação a um ambiente social rígido”. Sim, há rutura com um certo “discursivismo”, como disse Gastão. E se há prenúncios relativamente a essa atitude, temos de referir os casos de António Ramos Rosa, espécie de padrinho do grupo de 1961, em Faro, com “O tempo concreto” e “O boi da paciência” (em “O Grito Claro”) e do “Poema podendo servir de posfácio” de Mário Cesariny, que encerra “O discurso sobre a reabilitação do real quotidiano”. 1961 foi um ano especial. Os acontecimentos nacionais sofreram aceleração, em virtude da guerra de África. Nada seria como dantes. É verdade que 1958 tinha anunciado esse movimento uniformemente acelerado no sentido da democracia – a candidatura de Humberto Delgado, sob o impulso de António Sérgio, a tomada de posição do Bispo do Porto, o seu afastamento do país, mas também a publicação de “Mar Novo” de Sophia, como grito de alerta, perante a injusta e absurda desclassificação do projeto de João Andresen, Júlio Resende e Barata Feyo vencedor do concurso para homenagear o Infante e as Navegações, em Sagres. E muitos esquecem esse episódio fundamental. Lembro-me de ter sugerido a alguém que relesse o livro de Sophia de 1958, à luz desse impulso de uma genuína revolta. E o meu interlocutor não teve dúvidas. Se relermos a correspondência de Sophia com Jorge de Sena lá está tudo. Reuniram-se então os fatores que tornavam inexorável a liberdade. E era Sagres, e era o Algarve, e era a consciência da democracia que estavam em causa. E era a paisagem algarvia dominada pelo mar, que revelava a personalidade fantástica que domina o filme de João César Monteiro “Sophia de Mello Breyner Andresen” (1969). Frederico Lourenço tem razão quando afirma que é no Algarve que se inicia a Grécia de Sophia.
FORÇA DOS CORPOS E DO DESEJO
Quando lemos “A Morte Percutiva” de Gastão Cruz, ou quando encontramos Fiama, Luíza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito, nos textos de 1961, compreendemos o movimento comum, marcado pela energia resultante “do embate entre o corpo que aspira à sua plenitude e um país cercado, onde todos os movimentos são vigiados ou proibidos”. Percebe-se uma visão pessimista, a consciência de uma doença de repressão e de guerra, ligada a uma circunstância pessoal de luto. Contudo, subjacente a esse embate, a esperança tornava-se uma coisa física, como “força dos corpos e do desejo”. E Gastão Cruz em “A Doença” precisa: “A este sítio há de o amor / ainda amor chegar / agora vamos ambos / pelos campos à espera duma dor de que viver”. Eis por que razão o curso do tempo foi revelando nessa atitude não uma escolástica, mas o reconhecimento da coexistência de caminhos múltiplos. “Uma revolta de palavras, apelando a um novo discurso” (para Luíza Neto Jorge).
A LUZ AMADURECE AS PEDRAS E OS FIGOS
Volto a lembrar tudo, deambulo com o estio, ao som da música das cigarras e das palavras de Gastão Cruz (“Os Poemas”, Assírio e Alvim, 2009): “A luz amadurece as / pedras e os figos nos lados dos caminhos / adoça as alfarrobas fende a casca / cinzenta das / amêndoas e desprende-as / varejamos / as que ficam presas de leve / aos ramos; / no armazém da casa amontoadas / descascar as / amêndoas o verão”. Mas também lembro o ritmo antigo, junto de quem conheci e amei: “Na horta atrás da casa laranjeiras / figueiras e uma / romãzeira junto à nora / Às vezes vagarosa a mula com antolhos / rodava toda a tarde / fazendo os alcatruzes despejar / incessantemente água”. É quase perturbador como tudo se assemelha. Estou a ver tudo como se fosse agora. Este Mediterrâneo banhado pelo Atlântico leva-nos muito longe, aos fenícios e aos cartagineses, aos gregos e aos romanos, aos misteriosos povos da língua do Sudoeste. E vêm à lembrança Manuel Viegas Guerreiro, com especial atenção, às tradições e costumes, à memória imaterial, mas também Miguel Torga, sentado em Albufeira, num círculo de amigos, com o doutor Serra, a comentar a política, a gozar o fim da tarde e o luminoso pôr-do-Sol. Quando recordei com Clara Rocha esse tempo, reluziram-lhe os olhos com as recordações.
E volto a Gastão Cruz, a lembrar Sophia e Ruy Belo em “Repercussão” (2004) numa Esplanada do Campo Pequeno (“Não achas que a esplanada é uma pequena pátria a que fomos fiéis?”): “o autor entrara e a presença / dele tinha tornado mais longa a hesitação / entre o sentido e o som ou suprimira-a? / É pouco fotográfica a memória / sonora e uma noite em casa de Sophia / (Que fica dos teus passos dados e perdidos?) / mais do que cada frase, cada pausa / do voo do tempo fizera a suspensão / seria primavera novamente / era talvez em tempo de tormenta / janeiro de 70 mês de febre / um dia só que na memória sobra / (o resto vem do Ruy Belo / Ruy Belo é o poeta vivo que me interessa mais / e é talvez hoje o tempo de tormenta”. Quantas memórias neste regresso às ruas de Faro e ao rincão algarvio, povoados por velhos amigos? E assim ficamos mais sós. Mas as palavras acompanham-nos.
Guilherme d’Oliveira Martins
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