A VIDA DOS LIVROS
de 5 a 11 de Abril de 2010
“A Identidade Nacional” de José Mattoso (Cadernos democráticos, Fundação Mário Soares, Gradiva, 1998) permite-nos pensar Portugal, para além das mitologias e dos lugares comuns. Quando assinalamos o segundo centenário de Herculano é bom repensar Portugal à luz da mais moderna reflexão historiográfica e podemos fazer com este pequeno livro.
CLARO E COMPREENSIVO
José Mattoso traça de um modo claro e compreensivo um quadro conceptual que nos permite lidar com naturalidade e sem dramatismos com o tema complexo da identidade nacional. Em lugar de uma visão centrada apenas no que distingue, esquecida da complexidade e do relacionamento com outras realidades e outras culturas, o historiador assume uma perspectiva aberta sobre a identidade, com os olhos na compreensão das diferenças. E conta-nos que um dia o rei D. Luís perguntou do seu iate a uns pescadores, com quem se cruzou na costa, se eram portugueses; e a resposta foi desconcertante e clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa do Varzim!”. A resposta dá nota da complexidade do problema. O serem portugueses não lhes pôde ocorrer, quando a pertença à comunidade próxima é que estava presente. O sentimento de pertença afirma-se, assim, pela interpretação dos elos culturais, antes até das considerações de fronteira ou de língua. Se seguirmos os acontecimentos históricos – Reconquista, reinado de D. Afonso Henriques, definição da fronteira e adopção da língua com D. Dinis, afirmação da causa da autonomia dos “portugueses” com o Mestre de Aviz, contacto com novas terras e novas gentes na Expansão, decadência do século XVI (e as suas causas peninsulares), sebastianismo, dominação filipina, Restauração e guerra, pombalismo como nosso “Iluminismo”, invasões francesas, guerras civis, melhoramentos materiais, decadência decimonónica e difusão do sentimento nacional a partir de 1890, até à República, ao Estado Novo, à Democracia e à Europa – descobrimos que a formação da “nossa identidade nacional” corresponde à constituição gradual de uma realidade complexa e não homogénea. Os nossos primeiros reis eram-no “dos portugueses”, mas D. Afonso II passou a referir-se a “Portugal”, como um organismo com a sua própria consistência, “definido por si mesmo e não apenas pela pessoa do rei a que estava sujeito”. E depois dos acontecimentos de 1383, relatados apaixonadamente por Fernão Lopes, sabemos como essa tendência se acentuou, sem pôr em causa o protagonismo régio. O Príncipe Perfeito lançou as bases do Estado moderno com vontade e pulso de ferro, fazendo do “plano da Índia” questão de Estado. “A atribuição de um valor à identidade nacional resulta (…) de um processo muito lento” – diz Mattoso. Só as “Décadas” de João de Barros consideraram, aliás, pela primeira vez os portugueses como sujeitos dos relatos históricos das crónicas. Até aí tudo se centrava no protagonismo régio. Mas foi com “Os Lusíadas” que a gesta dos “portugueses” (povo que está “no extremo da Europa” e chega “aos confins do mundo”) se tornou foco de atenções e matéria de epopeia. Camões deu, assim, um impulso “ao processo de consciencialização da identidade nacional”. E o épico tornou-se símbolo, no século XIX, do movimento que levou depois do Ultimato inglês a uma forte afirmação “patriótica” e “nacionalista”. Houve, deste modo, uma evolução longa que levou ao enraizamento do sentimento de pertença, mas esta não pode confundir-se com o carácter “natural” ou “eterno” do fenómeno identitário.
HETEROGENEIDADE TERRITORIAL
E não podemos esquecer as dualidades geográficas e espaciais (litoral, interior; Norte, Sul; capital, província) e a heterogeneidade na distribuição de poderes e recursos. Apesar das múltiplas tentativas para explicar a dualidade peninsular, a verdade é que apenas a concepção política, mais ou menos ligada à vontade, tão valorizada por Herculano, apresenta a consistência que permite incorporar um conjunto muito amplo de factores, que apenas se reúnem porque existe uma realidade política e uma organização administrativa comum. O fortalecimento da Monarquia e do Estado fez-se, deste modo, pela centralização do poder real, em tensão com o alto clero e a alta nobreza, com o apoio dos concelhos e da maioria do pequeno clero e da nobreza local, mercê da administração dos benefícios, privilégios e mercês. E até aos nossos dias essa evolução faz-se sentir, estando hoje confrontada com os desafios e as incertezas da abertura democrática e do projecto europeu… Em suma, “Portugal não teve origem (…) numa formação étnica, mas numa realidade político-administrativa. Dito por outras palavras, e em oposição a uma doutrina geralmente aceita durante o período nacionalista, Portugal começou por ser uma formação de tipo estatal; só muito lentamente acabou por se tornar uma Nação (…). O Estado português foi agregando a si uma série de áreas territoriais com poucos vínculos entre si, com acentuadas diferenças culturais e com condições de vida muito distintas. O que fez a sua unidade foi a continuidade de um poder político que dominou o conjunto de uma maneira firme e fortemente centralizada”. Estas razões político-administrativas levaram à unidade territorial e de língua, que contrastam com a diversidade do território, magistralmente descrita e minuciosamente estudada por Orlando Ribeiro. Há dias, o historiador perguntava mesmo se a falta de um patamar entre o Estado e os municípios não seria “uma das razões dos problemas de redistribuição de recursos em Portugal. O Estado tem tudo; e os municípios, poderes muito reduzidos. (…) A escala dos municípios é demasiado pequena e a do Estado demasiado grande. Entre ambas nada há e essa é uma das razões da falta de desenvolvimento em Portugal” (DN, 3.4.10). O centralismo e a continuidade do poder político, aliados a uma mobilidade da população de sentido unívoco para os grandes centros urbanos, são responsáveis pela atenuação na geografia humana das diferenças regionais. Daí a estabilidade da fronteira nacional e a ausência de fronteiras regionais inequívocas. E o certo é que esse modelo quando transposto para a América do Sul, deu origem ao verdadeiro subcontinente que é o Brasil. Mas continuamos a cultivar um fatalismo que nos leva a confrontar um passado mítico com o presente de sermos “apenas um povo entre os povos”.
MARAVILHOSA IMPERFEIÇÃO
E se Eduardo Lourenço fala de “maravilhosa imperfeição”, o certo é que prevalece a acusação de imperfeição, havendo a dificuldade em contrapor-lhe uma acção concreta, sistemática, planeada, mas pragmática e flexível. O “Estado-messias” continua a ser visto como o grande bode expiatório, de que tudo se espera e que é responsável de todos os males. E no entanto mantém-se a fragilidade das iniciativas da chamada “sociedade civil”, o mundo social e empresarial pede privilégios e queixa-se de não os possuir, o poder local ressente-se de o municipalismo ter sido criado e consolidado à sombra do e em aliança com o poder central. E o certo é que essa fragilidade das iniciativas da sociedade coexiste com o que Boaventura de Sousa Santos designa como “sociedade-providência”: uma entre-ajuda informal de trocas, com cumplicidade no incumprimento dos deveres fiscais. A nação criou-se a partir do centro político. As políticas sociais nasceram de iniciativas centralizadas, o que dificultou a criação de mecanismos eficazes e descentralizados de controlo e prestação de contas. E a verdade é que a preservação da identidade e da autonomia nacionais teve um custo – o reforço dos instrumentos dirigistas e de centralização. E o défice das políticas educativas e de formação profissional e técnica, sobretudo até ao início dos anos setenta do século XX, bem como a persistência até aos nossos dias de um ensino secundário geral com uma diminuta componente profissionalizante e pouca relevância, aliados às desvalorização do esforço individual, do trabalho, da disciplina, do método e do mérito, apenas têm servido para agravar os bloqueamentos que continuam a fazer-se sentir. Apesar do grande esforço na escolarização, realizado nas últimas décadas, com resultados muito apreciáveis (sobretudo quando comparados com as estatísticas do início de setenta), a sociedade e a economia continuam a desvalorizar, no dia a dia, a componente aprendizagem, como factor decisivo de desenvolvimento. Compreenderemos que o atraso se combate com conhecimento e compreensão, com iniciativa cívica e partilha de responsabilidades?
Guilherme d’Oliveira Martins