A Vida dos Livros

VIDA DOS LIVROS

Duzentos anos depois do seu nascimento, devemos afirmar que Alexandre Herculano (1810-1877) continua a ser uma referência fundamental da cultura portuguesa. Poeta, romancista, fundador da moderna historiografia portuguesa, cidadão empenhado, liberal assumido, autor de obras marcantes como a “História de Portugal” (Bertrand Editores, 4 volumes, com prefácio de José Mattoso) ou o romance “Eurico, o Presbítero”, foi alguém que desde muito novo, e não tendo podido cursar Leis em Coimbra, se afirmou como um talentosíssimo escritor, sempre preocupado com a fundamentação rigorosa dos escritos que subscreveu, mas também empenhado em conseguir a governação do País pelo País, para que a emancipação dos povos e a participação dos cidadãos não fossem letras mortas. Amante da liberdade individual e defensor do fim dos constrangimentos à liberdade económica, Herculano foi quem da sua geração, e sem cedência de princípios, melhor compreendeu os jovens de 1870, que lhe devotou admiração incondicional.

 VIDA DOS LIVROS
de 29 de Março a 4 de Abril de 2010


Duzentos anos depois do seu nascimento, devemos afirmar que Alexandre Herculano (1810-1877) continua a ser uma referência fundamental da cultura portuguesa. Poeta, romancista, fundador da moderna historiografia portuguesa, cidadão empenhado, liberal assumido, autor de obras marcantes como a “História de Portugal” (Bertrand Editores, 4 volumes, com prefácio de José Mattoso) ou o romance “Eurico, o Presbítero”, foi alguém que desde muito novo, e não tendo podido cursar Leis em Coimbra, se afirmou como um talentosíssimo escritor, sempre preocupado com a fundamentação rigorosa dos escritos que subscreveu, mas também empenhado em conseguir a governação do País pelo País, para que a emancipação dos povos e a participação dos cidadãos não fossem letras mortas. Amante da liberdade individual e defensor do fim dos constrangimentos à liberdade económica, Herculano foi quem da sua geração, e sem cedência de princípios, melhor compreendeu os jovens de 1870, que lhe devotou admiração incondicional.



UM PENSADOR DE PORTUGAL
Não podemos reflectir sobre Portugal sem nos lembrarmos do contributo ímpar de Alexandre Herculano. É uma das figuras inesquecíveis da história da cultura portuguesa. E tornou-se um símbolo de honradez e de rigor. Nasceu há duzentos anos, na cidade de Lisboa, no velho Pátio do Gil (hoje já destruído), à Rua de S. Bento, a 28 de Março de 1810. Para ele a cidadania e o estudo das fontes e das raízes das instituições e do povo eram inseparáveis. Por isso, no Porto, em 1832, depois de ter desembarcado entre os bravos do Mindelo na praia de Pampelido, foi dispensado do serviço das armas, para ser nomeado bibliotecário na Biblioteca Pública da cidade, com o encargo ainda de reorganizar os fundos das bibliotecas monásticas, a começar na de Santa Cruz de Coimbra. Que preocupava o jovem estudioso? Conhecer o caminho que tornara possível a persistência de uma nação antiga, com as instituições e o povo empenhados em prosseguir objectivos e valores comuns. No entanto, nada de verdadeiro poderia apurar-se a não ser com recurso a documentos coevos e a uma ponderação inexorável dos factos. Não resisto a recordar a muito pouco conhecida “Oração Fúnebre” proferida pelo jovem António Cândido no dia 13 de Novembro de 1877 na Igreja da Lapa, na cidade do Porto: «Devemos a Alexandre Herculano a revelação da nossa consciência nacional. Um povo não pode dever a um homem mais largo benefício. Antes dele a nossa história era um conjunto de lendas monásticas, muito piedosas ou muito refalsadas, sem a compreensão profunda das leis sociais a que obedecemos como povo, sem a clara intuição da lógica a que se subordinaram as ideias e as obras dos que nos precederam; era um montão confuso, uma sobreposição informe de factos, tendo por fonte ou as crónicas primitivas, muito deficientes (embora apreciáveis como manifestação do nativo espírito português) ou os livros posteriores ao século XV, em que havia a discriminar, com enorme trabalho, dos laivos da erudição clássica os traços puros da tradição nacional. (…) Diante dos seus livros erga-se a posteridade, e julgue-os com desassombro: têm, não podiam deixar de ter, a par de grandes verdades e de muitíssimas belezas, erros e imperfeições; mas diante do seu porte austero, da sua honra imaculada, da sua vida honesta e sóbria, da intemerata moralidade dos seus costumes, da genial franqueza da sua alma, da rude, mas simpática têmpera da sua palavra, quer a dirigisse aos reis a quem servia, quer a entregasse ao povo de quem mais era, – curvem-se respeitosos os homens de boa vontade».

CULTOR DA TRADIÇÃO E DA LIBERDADE
Herculano foi um homem dividido entre o respeito da tradição e a rejeição das superstições. Para ele, por exemplo, o soldado liberal deveria, num esforço de síntese, hastear a cruz sobre o pendão da liberdade e tornar-se apóstolo da “fraternidade espiritual”. No entanto, na “História de Portugal” recusa as interpretações providencialistas simplificadoras e encontra “a verdadeira origem da independência de Portugal” na ideia de nacionalidade portuguesa, “ideia que amadurecera e radicara nos ânimos de modo indestrutível e que sucessivamente se apoderara dos espíritos do Conde D. Henrique, de D. Teresa e do filho deles”. Relendo-o, verificamos que também fez simplificações e cometeu erros, no entanto, abriu caminhos novos, ao apontar quais deveriam ser os instrumentos e os métodos. Através deles seria possível superar dificuldades e tentar encontrar a verdade dos factos. Considerou a vontade dos governantes como crucial para a criação da nacionalidade. A moderna historiografia considera a explicação como insuficiente, já que há outros factores adjuvantes, que não devem ser olvidados. Contra a ideia da prevalência circunstancial da vontade dos senhores do século XII, não poderia esquecer-se (na expressão de Oliveira Martins) o carácter vago e fugitivo do português, contrastando com a terminante afirmativa do castelhano, ou a nobreza do heroísmo lusitano, diferente da fúria dos nossos vizinhos, ou nosso sentimento e a nossa ironia, ao contrário da violência do outro lado da fronteira. No entanto, é indubitável que o Estado precedeu a nação, e o certo é que com mais ou menos dose de vontade, a verdade é que a perenidade da autonomia do ocidente peninsular e a sua projecção além-mundo devem ser lidas à luz de uma dialéctica em que a “vontade de ser” tem um papel indiscutível. Ainda Oliveira Martins, profundo admirador de Alexandre Herculano, disse que ele “pecava, com toda a escola romântica, Guizot à frente, porque a opinião e a política de mãos dadas o levavam a fazer da História da Idade Média uma apologia do sistema representativo (…). Levava, pois, para o estudo do passado as preocupações do presente, porque essas preocupações eram a essência da sua vida moral”. Essa poderá ser uma limitação do seu método, no entanto, passado século e meio sobre o contributo do historiador fica a pertinência e a actualidade da sua obra, com todas as limitações que possam ser referidas. É difícil ser-se tão duravelmente influente como Herculano o é. Foi indiscutivelmente moderno, apesar de ser um romântico, muito ancorado na tradição clássica. Contudo “falta-lhe ar na contextura sobrecarregada de discussões eruditas” – disse o escritor de “Portugal Contemporâneo”.

PROBLEMATIZADOR E INCONFORMISTA
A verdade é que é o Herculano problematizador que encontramos sempre. Alguém que não nos deixa indiferentes: cristão e anti-clerical, liberal e exigindo uma consciência nacional, português e homem de horizontes abertos, estudioso e sempre cidadão, erudito e próximo dos povos (apesar de tantas vezes os idealizar). Alguém que acreditava sinceramente em que o país fosse governado pelo país: “como realização deste princípio, temos pugnado pela verdade do sistema parlamentar, apesar do descrédito a que a reacção europeia o tem levado no continente; temo-nos esforçado por incutir aos nossos concidadãos a ideia de que só nele sinceramente respeitado pode estar a nossa marcha segura no caminho do progresso”. Em suma, Alexandre Herculano projecta-se na história da cultura portuguesa como um interrogador das origens da consciência nacional e do antigo carácter português. A independência é fruto da vontade e de uma convergência de factores entre os quais avulta a liberdade dos povos e das pessoas e a descentralização municipalista. É um exemplo para os dias de hoje – pela sobriedade, rigor, trabalho, disciplina, de recusa da mediocridade e da irrelevância. Tudo visto e ponderado, o melhor elogio que podemos fazer ao historiador nascido há dois séculos está feito por José Mattoso no Prefácio à “História de Portugal”: “Há (…) poucos autores com tão grande sentido da ‘época’ como Herculano. (…) No conjunto, pode dizer-se hoje, quase século e meio depois de ter procedido a este imenso trabalho, que conheceu e aproveitou a grande maioria das fontes disponíveis e que a sua interpretação foi geralmente correcta”. Que mais dizer em seu abono? 


Guilherme d’Oliveira Martins


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