A Vida dos Livros

Molière (1622-1673)

Molière, o genial dramaturgo, nasceu há quatro séculos, e a sua fama chega aos nossos dias, quer pelas obras que deixou, quer pelas mudanças que introduziu na arte do teatro, desde os temas, encenações, regras de representação e relação com o público.

GRANDE DRAMATURGO
Quem ler a nossa imprensa de há cem anos, verificará que as invocações do terceiro centenário do nascimento de Molière são bastantes, e que o mundo intelectual e do teatro não deixou passar em claro esse acontecimento. Molière (1622-1673) é a grande referência do teatro francês (e do teatro europeu) do século XVII, tendo tido um apoio muito especial de Luís XIV, que foi admirador das suas sátiras, comédias e tragédias, o que permitiu ao dramaturgo celebrizar-se e tornar-se organizador dos divertimentos da Corte. Molière era o nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, nascido em Paris a 15 de janeiro de 1622, filho de um artífice de tapeçarias da Corte. O pseudónimo escolhido por Molière procura uma identificação vagamente nobilitada. Estudou no Colégio de Clermont, de 1633 a 1639, mas depressa manifestou uma especial inclinação pela arte de Talma, em lugar de seguir a tradição profissional familiar. E assim começou cedo a frequentar os palcos de representação montados nas pontes sobre o rio Sena. O momento foi favorável às suas ambições, já que Luís XIV, bem como o Cardeal Richelieu, empenharam-se então em promover diversas atividades culturais, como modo de afirmação da influência francesa na Europa. E o teatro conheceu um momento de apogeu, tornando-se Paris um centro muito concorrido e prestigiado de atividades dramatúrgicas. No entanto, para contrariar a má fama dos atores e artistas, Luís XIV teve necessidade de assinar uma pragmática, promovendo a qualificação das profissões ligadas ao teatro. Além disso, o rei passou a financiar companhias e Richelieu inaugurou novos teatros.

OS PRIMEIROS PASSOS PARA O SUCESSO
Associado aos irmãos Béjart, os primeiros tempos do jovem ator não foram de sucesso, sendo até condenado à prisão por dívidas. Com a ajuda do pai consegue ser libertado, e integra-se na companhia de “Charles Du Fresne”, encenando e representando inúmeras peças na província, durante 14 anos. Essa experiência permitiu-lhe estudar o género humano, recebendo do escritor Boileau o apelido de “O Contemplador”. Em 1658, obtém autorização para atuar diante do rei, levando à cena uma peça de Racine, que apenas obteve sucesso graças ao génio teatral de Molière, numa hábil ligação entre discurso e mímica. Se a peça não parecia vocacionada para o sucesso, a verdade é que o público tomou consciência de que Molière tinha qualidades excecionais e aplaudiu-o. E assim o duque Filipe de Orléans, irmão do rei, tomou o grupo sob sua proteção e, perante o grande êxito, sete anos mais tarde, o monarca deu à companhia o nome de “Troupe du Roi”. Em 1661, Molière passa a representar no Palais-Royal, onde apresenta 31 obras próprias e outras de diversos autores, enfrentando a acusação de imoralidade e de difamação, em face da crítica social que empreende. No entanto, a sua popularidade aumenta significativamente. Em 1662, casa-se com a jovem atriz Armande Béjart, vinte anos mais nova, o que motiva novo escândalo. Mas a atividade continua e encena, com grande sucesso, “Escola de Mulheres”, que aborda problemas morais e retrata duramente a condição humana. Recebe do rei uma pensão e é declarado “excelente poeta cômico”. Com encenação mista de música, bailado e teatro, estreia, com escândalo, a comédia “O Tartufo” (1664). Tartufo é um falso devoto que, usando a religião, se introduz numa família honesta, deixando a nu o pior da sociedade parisiense de então. Religiosos presentes sentem-se retratados e atingidos e forçam a proibição da peça.

UM ENCENADOR CONTROVERSO
Molière encena ainda “Don Juan” e “O Misantropo” (1665), uma paródia sobre a absurda arrogância que caracteriza as classes dominantes da altura. Mas não desiste do “Tartufo”. Remodela a peça, levando-a à cena sob o nome de “Panulfo”. Mas é imediatamente proibida pelo arcebispo de Paris, que ameaça com excomunhão os espectadores. Em 1668, encena “O Avarento”, uma de suas obras-primas, denunciando a desumanidade da paixão pelo dinheiro e a tentação de comprar indignamente o respeito da sociedade. Não se trata, porém de uma farsa hilariante, mas de uma severa crítica em que o público percebe que é ele mesmo o alvo essencial da mesma. Entretanto, a produção continua. Leva à cena diversas comédias e tragédias, como “Psiché”, “Le Bourgeois Gentilhomme” (1670), “As Amantes Magníficas” e “As Mulheres Sábias” (1672), fazendo grande sucesso com o teatro de crítica social, na linha dos maiores dramaturgos desde a antiguidade. Quando representava o protagonista de sua última obra “Le Malade Imaginaire”, Molière sofreu um repentino colapso, que o ator procurou dissimular, mas que o levará morte, poucas horas depois, em sua casa em Paris, no dia 17 de fevereiro de 1673. Muito se tem discutido sobre as semelhanças entre “O Fidalgo Aprendiz” do nosso Francisco Manuel de Melo e “Le Bourgeois Gentilhomme” do celebrado dramaturgo francês. Se é verdade que “O Fidalgo” (1665) é anterior ao “Le Bourgeois Gentilhomme” (1670) de Molière, há pontos em comum entre Monsieur Jourdain e Gil Cogominho. Em ambos temos o pretensiosismo provinciano de arrivistas que desejam alcandorar-se socialmente através de uma série de estratagemas de uma comédia de enganos. É disso que se trata nos dois casos. Poderia, assim, ter acontecido que o dramaturgo francês fosse influenciado por D. Francisco Manuel de Melo (1608-1666), ou tivessem ambos falado numa das deambulações diplomáticas do autor português, no entanto, tal não parece ser a melhor explicação. O mais certo é que ambos, o português e o francês, tenham ido buscar inspiração a Pietro Aretino (1492-1556), na “Cortigiana”, num tema clássico, que Aristófanes também tratou nas “Nuvens” – o pelintra que se dá ares de grande senhor e que procura agir (recebendo lições para o efeito) para que o reconheçam numa qualidade que não tem. De facto, D. Francisco leu Aretino, Molière também, e ambos foram beber à mesma fonte, bem influente nesse tempo. A verdade é que há entre os dois textos evidentes pontos de contacto na produção artística e nos objetivos críticos em relação à sociedade e às suas fraquezas. No fundo, a sociedade europeia padecia de pecados comuns, que a melhor dramaturgia não podia deixar de tratar.

Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença

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