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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA

São aqui publicadas semanalmente as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”.

O REI, A PERNA DE FRANGO,
AS COXAS DA MOÇA E O APALPÃO


por João Bénard da Costa


1 – Há quinze dias, disse aqui todo o bem que penso da tradução de Frederico Lourenço de “A Odisseia”. Hoje, limito-me a introduzir um excerto do texto “Uma Dinastia Sensível” de M.S. Lourenço. Apesar da relação de causa a efeito (ou de efeito a causa), não me move qualquer nepotismo ou qualquer compadrio. Aconteceu, simplesmente, que passei o fim do ano passado a ler o Homero de Frederico Lourenço e vivi o início do ano presente a pensar quotidianamente na actualidade do referido excerto. “Honni soit”…


2 – De resto, vou ser muito preguiçoso, já que, dada a extensão da passagem que vou citar, pouco haverá de mim nesta crónica. Limito-me a indicar-vos o tempo e o modo.
Foi mesmo n’”O Tempo e o Modo”, revista ultimamente tão badalada, que M.S. Lourenço publicou “Uma Dinastia Sensível” (nº 62-63 – Setembro-Outubro de 1968), precisamente o exemplar da revista que assinalou o trambolhão de Salazar e o pinote de Marcello.
Que texto era esse? Uma glosa a uma famosa anedota sobre D. João VI. Dizia-se que o rei, assaz desbragado, comia pernas de frango que tirava dos bolsos, enquanto metia as mãos pelas saias das raparigas. O filho, D. Miguel, não era melhor: organizava largadas de touros contra os ministros reunidos em conselho. M.S. Lourenço contou esta história com tema e variações. Cada versão dela era narrada com uso de diversas figuras de estilo e de diversas figuras de retórica: calão marxista, calão tradicionalista, à neo-realista, em “pastiche” de Agustina, ao estilo da “filosofia portuguesa”, em silogismos, como jornalista adjectivante, como argumentista de um filme histórico à Leitão de Barros, etc., etc. As muitas pátrias da língua portuguesa para uma história pátria e bem pátria. Quem a quiser ler na íntegra (é um conselho que me permito) encontra-a na antologia de “O Tempo e o Modo” que o Centro Nacional de Cultura recentemente editou. Mas a versão da história que me tem perseguido, ao sabor dos pátrios discursos deste luarento Janeiro, não é nenhuma dessas. É a versão em que um político concede a um jornalista uma entrevista sobre os acontecimentos acima sumariados. Passo ao que interessa, sem mais preâmbulos. “Remember”.


3- “Pensa V. Exa. que o Rei saiu efectivamente do palácio? A pergunta, tal como está formulada, presta-se a equívocos que convém, inicialmente, desfazer. Por um lado, não interessa apurar o que os indivíduos, particularmente considerados, pensam acerca deste ou daquele acontecimento. A esfera privada da opinião merece todo o respeito e pode mesmo dizer-se que é de direito natural garantir esse domínio. Por outro lado, não é menos certo que na medida em que nós trazemos para a discussão toda esta gama de problemas, alguns esclarecimentos podem surgir e novas directrizes serem, digamos assim, corrigidas pela discussão útil e pelo debate construtivo. Tem V. Exa. conhecimento que o Rei estivesse nesse momento a comer uma perna de frango? Com efeito, não é agora a primeira vez que oiço a versão, que adiante já qualificarei, da perna de frango. Quanto a mim, julgo que as nações e os povos lucrariam singularmente em criar condições que impedissem o aparecimento de rumores, que outra finalidade não podem ter que não seja a agitação vazia, sem propósito verdadeiramente humanizador. Julgo que é uma tendência do Estado moderno e que actua predominantemente em duas linhas de força: uma que chamarei centrífuga e que é mais aquela a que me refiro acima e a complementar força centrípeta que é aquela que a sociedade tem que desenvolver se quiser permanecer para lá das modas passageiras e transitórias. Para mim tenho que nos devemos, agora e mais do que nunca, agarrar àquele conjunto de princípios imutáveis depositados na sabedoria das nações e na consciência dos povos. Eles constituem um denominador comum subjacente às diversas culturas e às diversas expressões políticas que essas culturas materializaram. Julga V. Exa. que havia intenção, por parte do Rei, de violar a moça? Julgo que se tem vindo a observar que o conjunto da opinião geral a esse respeito é particularmente animador. Se exceptuarmos uma pequena minoria sem peso real no conjunto do problema, podemos afirmar que a parte representativa e útil deixou de ver o problema desse modo. De resto, à medida que as próprias iniciativas e os pormenores da vida do Rei vão sendo conhecidos, mais se afirma a convicção de que a nossa tese acabará por triunfar. Pode mesmo dizer-se que já vão aparecendo sinais, que aumentam de dia para dia, indicando que num futuro próximo estaremos nesta mesma sala a considerar a questão dum modo bastante mais optimista.
Devemos então interpretar que V. Exa. opina pela ausência de intenção?
De modo algum a minha resposta autoriza essa interpretação. Mais uma vez ocorre dizer que o interesse público e o bem comum estão em causa quando se produz qualquer espécie de informação deficiente ou, o que seria pior ainda, intencionalmente deformadora. Existe uma função pública a ser desempenhada neste particular e que é de extensa importância.
Como interpretar então os testemunhos das pessoas que viram a moça com as saias levantadas?
Não é fácil responder a essa pergunta, não em razão da matéria de facto que ela encerra, mas antes dos problemas especificamente jurídicos que nela se contêm. Não pretendo sugerir que são falsos todos os testemunhos que se pretendem trazer para esclarecimento do problema ou da situação que estamos a enfrentar. O que tenho em vista é afirmar que eles não representam nem a substância das coisas nem as qualidades formais exigidas para o testemunho. Quando, contra toda a evidência dos factos, contra toda a razão, a experiência, a bom senso das gerações, um testemunho contraditório se ergue, creio não exagerar se pretender que esse testemunho é falso. Não é falso no domínio puramente factual. Mas é intrinsecamente falso. É falso pela necessária força evidente das coisas. É ainda falso formalmente, porque irrepresentativo. Não podemos hipotecar as nossas decisões e os nossos juízos mais graves ao primeiro testemunho que se nos apresentar. E tenho para mim que as sociedades muito aprenderão se se libertarem do jugo do testemunho. Não pretendo com isto dizer que o testemunho como tal, enquanto força pública e orientada para o interesse nacional, seja em si um erro. Ao contrário, o direito das gentes há muito que o consagrou. O que é com certeza um mal é o uso arbitrário do testemunho. Submeter todos os interesses ao testemunho como se ele fosse uma força omnipotente: é aí que reside, no meu entender, o mal. Por esse motivo eu creio que a tendência haverá de ser de colocar o testemunho, de o enquadrar nas coordenadas gerais do interesse colectivo. Em minha opinião é o Estado o órgão que por excelência poderá obter um verdadeiro rendimento moral do testemunho, na medida em que for capaz de criar estruturas que o desenvolvam e possibilitem o seu exercício.
Vê V. Exa. alguma relação entre os garraios e a dissolução da reunião? É por demais óbvio que não há qualquer relação. Sob nenhum pretexto se poderá dizer que a reunião foi dissolvida. O Rei, de resto, conserva como uma das suas prerrogativas a suspensão temporária de uma reunião ou até do seu adiamento. Ainda se poderá sempre acrescentar que o aspecto exterior de uma reunião que termina por ter chegado ao fim da agenda de trabalho tem o mesmo aspecto da reunião a que nos referimos. É do conhecimento geral que nem sempre se consegue cumprir um horário marcado. Os atrasos que inevitavelmente surgem justificam sobejamente que alguns ministros se apressem para a saída. Mas se o curro e a sala de reuniões são, como se presume, salas diferentes, como explica V. Exa. a presença dos garraios? Sem dúvida que a essa pergunta não se pode responder sem que uma questão prévia seja resolvida. Porque o problema que se oculta subtilmente sob essa forma é o seguinte: como se pode pensar que a unidade se fragmente? Como admitir a presença de elementos diferentes numa realidade una? Julgo que as respostas que ao longo dos séculos os homens têm dado para este problema merecem uma reflexão atenta e um exame rigoroso. Foi ambição minha, e o futuro dirá se válida ou não, oferecer uma solução que conjugasse a continuidade do evoluir com as respostas mais conformes à razão, a moral e ao direito. Porque se é certo que é na continuidade de um processo histórico e na obediência a essa continuidade que as nações se radicam, não é menos certo que é necessário por vezes que alguns pontos de descontinuidade se apresentem para revitalizar a tradição. Uma sociedade que só vive de tradições é uma sociedade morta. Uma sociedade que só vive de inovações deixa de ser uma sociedade civilizada e regressa à anarquia tribal. E alguns sinais vemos hoje no Velho e sobretudo no Novo Mundo indicando que o direito tribal se está a tentar sobrepor ao direito que a cultura e a civilização das gerações conseguiram produzir. Creio por isso que no interior de um organismo uno não pode haver divisões. A divisão mata: a unidade fortifica. Quando a razão e a moral mostram à evidência que o organismo é uno, não se pode tolerar que ele se fragmente. Porque ao fragmentar-se desaparece. É preciso um esforço cada vez mais intenso, uma vigilância a cada hora mais generosa, para evitar divisões. A unidade é rica em potência, contém todas as virtualidades. Nada do que é conforme à moral e à razão necessita de se realizar fora dela. Mas isto sabe-se desde os gregos: e eu não estaria aqui a repeti-lo se não visse a ruína a aproximar-se das consciências e dos povos que o esquecem.»
De 1 a 22 de Janeiro, parece que os políticos portugueses têm usado, para a justiça ou para a economia, para as relações internas e para as relações externas, como principal fonte de inspiração esta notável entrevista.


3 Janeiro 2004 in Público

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