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Conto de Natal

Da autoria de Guilherme d’Oliveira Martins, é o conto de Natal que a equipa do CNC partilha com todos, com os votos de um FELIZ NATAL e próspero ANO NOVO.

Era o Natal de 1669, havia azáfama em casa de Baltazar Gomes Figueira, artista com dotes e experiência consagrados, e de D. Catarina d’Ayala, andaluza que se tornara portuguesa por amor. Reinava ainda o Senhor D. Afonso VI, mesmo que só formalmente, pois era regente seu irmão D. Pedro, que viria a ser o segundo de seu nome. D. Maria Francisca de Saboia era a Rainha-Princesa desde abril de 1668, havia pouco mais de um ano, quando a Bula do Papa Clemente IX autorizou a anulação do matrimónio com D. Afonso, pelo reconhecimento da sua incapacidade, e permitiu o consórcio da Rainha com o regente D. Pedro. A história foi longa e atribulada e não cabe aqui desenvolver o seu enredo. A filha de Baltazar e Catarina, Josefa, era uma jovem pintora reconhecida, consagrada pelos muitos que a visitavam para vê-la desenhar, gravar ou pintar e para adquirirem as suas preciosas naturezas mortas em que deliciosos acepipes se associavam a decorações florais, verdadeiras metáforas divinas, que davam luz e cor à melhor poesia do tempo. Havia movimento, alegria, música, um verdadeiro bailado permanente, naquela Quinta da Capeleira, nas proximidades de Óbidos, ponto de encontro de artistas, poetas, pintores e músicos. Há mais de trinta anos que a família regressara de Sevilha e as ligações andaluzas continuaram a fazer-se sentir. Francisco Herrera, el Viejo, artista e pedagogo, tinha sido padrinho e inspirador daquela família. Morrera há mais de dez anos, mas mantinha-se como referência e as famílias continuavam a dar-se e a visitar-se. Como habitualmente, também naquele ano os amigos próximos andaluzes tinham vindo até Óbidos para festejarem a época natalícia e o Dia de Reis.

Mas havia um pequeno segredo. Josefa tinha prometido a seu pai uma especial lembrança natalícia para toda a família e, havia algumas semanas, escondia por trás de uma manta escura uma tela misteriosa, que não desejava mostrar a ninguém… Com um método de cuidado e pormenor, que lhe era bem conhecido, passava horas e horas, quando a casa se aquietava e os convivas se recolhiam, a tratar a sua obra. Que esconderia ela? Uma natureza de mil flores e iguarias ou a representação de um ente querido? O mistério era especialmente desejado e protegido por todos. Entre a azáfama das vésperas da época grande da Natividade, multiplicava-se nas cozinhas a confeição das iguarias e acepipes. Josefa não faltava aos preparativos e apenas se apartava dos amigos e da família para, em horas tardias, se dedicar ao misterioso tesouro. Mas no tempo em que se afadigava nos arranjos da casa, eis que aprontava as mesas com as iguarias, numa decoração profusamente barroca, com pão de ló, biscoitos, suspiros, queijadas, sonhos, fatias douradas, azevias, broas de milho, morgados, ovos-moles, toucinho do céu, castanhas doces, caramelos, pudins, leite-creme, e os assombrosos queijos da Serra tudo com o enquadramento das pequenas flores, dos linhos engomados, dos tecidos de cores variegadas, das cerâmicas, dos cestos, das frutas abundantes, as peras, as maçãs, as romãs, os figos, as castanhas, as nozes ou as amêndoas.  Mas em toda aquela profusão, havia a ideia de projetar o Menino Deus na eterna representação eucarística da superação da ideia antiga do sacrifício judaico, agora substituído pela vitalidade da natureza que juntava o pão e o vinho, o leite e o mel… Para a jovem Josefa, no fundo, não haveria melhor representação para a Arte do que a ideia do nascimento, como metáfora da criação, que permanentemente revive e se repete. Havia poucos dias, nos encontros que mantinha no Paço Real com a Rainha-Princesa D. Maria Francisca, que por ela tinha especial apreço, enquanto pousava para um retrato, esta a desafiara a tornar viva na sua pintura um presépio no qual pudesse deixar presente uma vida criadora, permanentemente lembrada. E vinha à memória Jerónimo Baía e a sua bela invocação:  «– Venha ao portal logo; / Verá que não minto, / Pois de várias sortes / É doce infinito. / – Desculpa, minha alma. / Mas ah! Que diviso?! / Envolto em mantilhas, / Um Infante lindo!». E eis que o segredo se revela. Num momento fugaz, Josefa mostrou a seu pai a obra que a ocupava tão intensa e misteriosamente. E Baltazar Figueira teve um assomo de orgulho. Essa era a obra que sempre ambicionara fazer e apresentar, não como mostra de artesão, mas como humaníssima expressão de um nobre sentimento. Conhecera muitas representações de presépios, mas nunca encontrara uma ligação tão completa entre a humanidade e o espírito. Ali estavam um pastor e uma pastora, que invocavam as melhores éclogas e que reclamavam toda a riqueza dos diálogos de mestre Gil e do seu teatro – como figuração da vida. Ela e ele, os dois pastores, trazem nos cestos, amorosamente arranjados, envoltos no mais alvo dos linhos, os melhores manjares, símbolo e destino de um doce infinito. E adivinham-se sopa e arroz de cabidela, quase se ouve o grasnar do pato que os acompanha. É a vida vivida que ali está bem presente. O pastor e a pastora honram o Menino-Deus, que os anjos papudos glorificam, suspensos como se não tivessem peso – “Gloria in Excelsis Deo”. Por perto, estão o asno e o boi a aquecer o ambiente de luz. E uma vela acesa torna-se penumbra diante da intensidade que emana da criança, que os pais protegem com desvelo. Maria e José oferecem-se ao pequeno Emmanuel e os seus olhares cruzam-se num diálogo que nos interpela. Foram grandes o júbilo e a festa quando a pintura foi revelada, tudo dominando. Em boa hora, Josefa aceitara o desafio de D. Maria Francisca e dera vida a um presépio único, que passou a representar a quietude e a paz. Continuava a azáfama em casa de Baltazar Gomes Figueira, artista com dotes e experiência consagrados, e de Catarina, andaluza que se tornara portuguesa por amor. Josefa d’Ayala, dita de Óbidos, fizera com muito amor aquele quadro de luz e de serenidade que se tornou centro e motivo de entrega, de troca e de encontro para aquela família que celebrava a vida que vivia e a amizade que cultivava… 

Bom Natal!
Guilherme d’Oliveira Martins

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