A Vida dos Livros

A VIDA DOS LIVROS

Não podemos falar da história da “New York Review of Books” sem referir David Levine (1926-2009), o genial caricaturista cujos desenhos nos deram, ao longo de muitos anos, excelentes comentários irónicos e lúcidos sobre as mais diversas personalidades do mundo da cultura e da política. Hoje podemos deleitar-nos em www.nybooks.com/gallery/, compreendendo que Levine é, ao lado dos grandes caricaturistas da história dos últimos séculos, como Honoré Daumier (1808-1879), Richard Doyle (1824-1883), Thomas Nast (1840-1902), Leslie Ward (1851-1922) ou a escola alemã do “Simplicissimus”, um criador inconfundível no qual o humor inteligente se junta ao oportuno comentário crítico. Recordamos hoje igualmente a morte de um dos mais importantes autores belgas da escola da linha clara, Tibet (1931-2010), de seu nome Gilbert Gascard, criador nos anos cinquenta, na revista “Tintin”, com A.-P. Duchâteau, de “Ric Hochet”, cujos álbuns constituem muito bons exemplos da melhor banda desenhada europeia.

A VIDA DOS LIVROS
De 18 a 24 de Janeiro de 2010



Não podemos falar da história da “New York Review of Books” sem referir David Levine (1926-2009), o genial caricaturista cujos desenhos nos deram, ao longo de muitos anos, excelentes comentários irónicos e lúcidos sobre as mais diversas personalidades do mundo da cultura e da política. Hoje podemos deleitar-nos em www.nybooks.com/gallery/, compreendendo que Levine é, ao lado dos grandes caricaturistas da história dos últimos séculos, como Honoré Daumier (1808-1879), Richard Doyle (1824-1883), Thomas Nast (1840-1902), Leslie Ward (1851-1922) ou a escola alemã do “Simplicissimus”, um criador inconfundível no qual o humor inteligente se junta ao oportuno comentário crítico. Recordamos hoje igualmente a morte de um dos mais importantes autores belgas da escola da linha clara, Tibet (1931-2010), de seu nome Gilbert Gascard, criador nos anos cinquenta, na revista “Tintin”, com A.-P. Duchâteau, de “Ric Hochet”, cujos álbuns constituem muito bons exemplos da melhor banda desenhada europeia.


 


LEVINE – O MUNDO À MÃO
Saul Bellow, Norman Mailer, Truman Capote e Hannah Arendt foram das suas relações. Admirava muito o exemplo do Presidente Franklin Delano Roosevelt. Estudou Belas-Artes em Filadélfia e em Brooklyn. Longe da caricatura, começou por ser um pintor de temas sociais, tornando-se um seguidor do pintor expressionista abstracto Hans Hoffmann. Depois David Levine tomou os passos de James Whistler e de Jean Vuillard, expondo em galerias regularmente, com apreciável êxito. A pouco e pouco, o sucesso leva-o a tornar-se um ilustrador muito solicitado – cultivando a ironia e o humor. Desperta a atenção de Clay Felker da revista “Esquire” e daí à chegada à grande imprensa de prestígio é um ápice. Torna-se ilustrador da “Esquire” e da “Atlas”, magazines de prestígio, em finais dos anos cinquenta. Em 1963, entra na “New York Review of Books”, onde se torna uma peça chave, desenhando dez a doze desenhos por mês. Até 2007, data em que deixou a colaboração com o periódico por doença, assinou mais de 3800 originais. Nos últimos anos o periódico tem vindo a republicar uma antologia de David Levine. Torna-se o ex-libris do NYRB, mas empresta ainda o seu talento às melhores publicações do seu tempo: Washington Post, New York Times, Time, Newsweek, New Yorker e Rolling Stone. Ilustra textos para crianças de Esopo ou de Lewis Carroll e publica recolhas, que se tornam best sellers como: “The Man from M.A.L.I.C.E., Movies, Art, Literature & International…” (1966, Dutton). Para ele, a caricatura não era um exercício diletante, era um acto de criação e de pensamento, facto tanto mais importante quanto é certo que muito prezava as ideias. Se olharmos com atenção para cada uma das suas obras, depressa descobrimos que estamos perante pequenos ensaios, feitos a tinta da china, com subtis traços, que salientam ou distorcem este ou aquele aspecto das figuras retratadas, para melhor destacar a sua personalidade e a sua importância no tempo em que viveram. A macrocefalia, aliás, demonstra a valorização da cabeça e do carácter. Muitos dos seus colegas de profissão fizeram questão de salientar que Levine tinha um lugar à parte e destacado no panorama da caricatura e do debate das ideias. Era um artista, um psicólogo, um crítico literário, um jornalista com uma sensibilidade apuradíssima, que intervinha com a sua arte na vida cultural e política. No entanto, o seu sentido crítico, tantas vezes severo, levou a que fosse identificado, sem razão, com posições políticas radicais. “O mundo assemelha-se demasiado a uma marionette nas mãos de alguns bonecreiros” – disse um dia David Levine. E disse mais: “Só a sátira política pode salvar um país do inferno”. Desmentindo os seus detractores, afirmou ainda que “não podia ter ido mais longe, uma vez que não desejava ser demolidor. A caricatura que vai longe de mais avilta o olhar do ser humano”. Era, no fundo, um cultor do equilíbrio e da dignidade, sem cedências, mas não se eximia a forçar os traços caricaturais (o nariz de De Gaulle, o estômago Vietname de Lyndon Johnson, o olhar de J. Paul Sartre…) ou a crítica severa em relação àqueles com que não simpatizava (sendo Nixon o caso mais notório). Não era, por isso, neutro – nem julgava poder sê-lo, uma vez que sabia não poder deixar as pessoas indiferentes. Em Portugal, tornou-se célebre, sobretudo depois de 1974, não só ao desenhar o General António de Spínola, Mário Soares ou Álvaro Cunhal, mas também ao ver publicadas as suas caricaturas nos tempos heróicos do “Jornal Novo”.

O DETECTIVE JORNALISTA.
A morte de Tibet priva-nos de um dos autores mais significativos da “geração de ouro” da banda desenhada belga. E pode mesmo dizer-se que este foi não só um dos desenhadores mais prolíficos da revista Tintin, mas também um dos mais influentes, pelo rigor, qualidade, consistência, clareza e persistência da sua produção. Desde 1950, Tibet, aliás, Gilbert Gascard (natural de Marselha), foi maquetista ilustrador da revista “Tintin” belga, depois de uma experiência nos estúdios da Disney em Bruxelas, na produção da revista “Mickey Magazine”, e de ter criado uma personagem de existência fugaz, Dave O’Flynn (1949). Em 1952, iniciou a publicação de “Aventuras de Chick Bill no Arizona”, como uma fábula de animais, que depressa se antropomorfizou a partir da terceira aventura, tendo atingido 69 álbuns. E em 1955, nasceu Ric Hochet, como protagonista de uma série de quebra-cabeças policiais, primeiro como jovem ardina e depois como jornalista de “La Rafale”. Logo nesse ano, o “Cavaleiro Andante” de Adolfo Simões Müller publicou o enigma “Qual dos Três?”, em que Ric Hochet surgia com o nome de João Nuno. Na passagem da década surgiram duas outras séries: “Júnior” (1959) e “3A” (1962). O grande sucesso de Tibet tornou-se, sem dúvida, Ric Hochet (de ricochete, metáfora tirada do sucesso do investigador policial imbatível, com o seu inseparável Inspector Bourdon).


 


Caricaturista muito dotado, Tibet vai desempenhar um papel cada vez mais importante na equipa de “Tintin” (ao lado de Hergé, Greg, Mittéï, Paul Cuvelier, Jacques Martin, E.P. Jacobs…) e na casa “Le Lombard” (de Raymond Leblanc), sucedendo, aliás, a Bob de Moor como director gráfico da editora em 1992. Ric Hochet torna-se um herói da revista, com direito a protagonizar séries de continuados em 1958. Logo em 1962, o “Álbum do Cavaleiro Andante” publica “Camaleão – Perigo de Morte” (em 1963 sairá o primeiro álbum na Bélgica) e em 1965 a revista “Zorro”, também dirigida por Simões Müller, que sucedeu ao “Cavaleiro Andante”, dá à estampa “O Caso dos Quadros Roubados” e “A Sombra do Camaleão”, sendo Ric Hochet designado como Mário João e o seu amigo como Inspector Navarro. Nota-se, pois, uma ligação muito forte a Portugal desde os primórdios, à semelhança do que aconteceu com o próprio Hergé. Até hoje saíram 76 álbuns de aventuras de Ric Hochet, anunciando-se para muito breve a publicação do 77º álbum, número quase irónico, para que proclamou durante toda a vida trabalhar para os jovens dos 7 aos 77 anos. Em poucas palavras, pode dizer-se que Tibet foi um desenhador muito dotado, um caricaturista muito seguro e um dos melhores representantes da “linha clara”. Teve a inteligência de se associar a um autor muito imaginativo como A.P. Duchâteau que lhe permitiu ser intérprete na banda desenhada de uma tradição do romance policial que tem no belga George Simenon um exemplo. Aqui ou ali notam-se ainda influências de Leslie Charteris, criador da série televisiva “O Santo”, protagonizada por Roger Moore no papel de Simon Templar. O prestígio de Tibet levaria o Ministro da Educação Nacional de França Jack Lang a torná-lo Cavaleiro das Artes e das Letras (2000), sendo elevado em 2006 ao grau de Oficial. Foi, entretanto, designado pelo seu país de adopção, a Bélgica, Embaixador Cultural. Patrick Gaumet publicou uma monografia sobre a vida e obra de Tibet intitulada “Tibet: La Fureur de Rire” (2000).


Guilherme d’Oliveira Martins


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