A VIDA DOS LIVROS
De 21 a 27 de Dezembro de 2009.
“A Minha Primeira Sophia” de Fernando Pinto do Amaral, com ilustrações de Fernanda Fragateiro (D. Quixote, 2009) é um livro para crianças escrito com sentido pedagógico, com o intuito de introduzir os mais novos não apenas no conhecimento da vida de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas também de os sensibilizar para a literatura, para a poesia e para a criação artística.
UM CONTO DIFERENTE
Era a hora de deitar e a Teresa gosta sempre de ouvir mais uma história. Há sempre lugar para mais uma peripécia, para mais uma narrativa. Mas a imaginação esgota-se ao fim de tantas recordações do tempo em que havia burros no Algarve, em que as vacas davam leite quentinho, em que a avó Ana fazia deliciosas gemadas. Naquela noite a ideia foi outra, em vez de falar da praga dos Schtroumpfs negros que atormentavam as normais criaturinhas azuis ou de acompanhar Obélix nas suas deambulações pela Gália ou por Roma, seria bom recordar uma menina que nasceu no Porto e que escreveu sobre o “Rapaz de Bronze”, que um dia destes já encontráramos numa das nossas histórias nocturnas. Essa menina chamava-se Sophia, que é a palavra que os gregos têm para designar a sabedoria, e vivia no Campo Alegre, na cidade do Porto, um lugar que era exactamente como o nome indicava, de facto, a natureza era ali alegre e exuberante, mais do que em qualquer outro lugar. Uma grande casa pontificava, “no meio de uma enorme quinta onde havia muitas árvores diferentes, pomares e jardins com belas roseiras e camélias que floriam em Novembro”. Então a Teresinha lembrou-se das flores que rodeavam o “Rapaz de Bronze” na história que ouvira dias atrás. «Era uma vez um jardim maravilhoso, cheio de grandes tílias, bétulas, carvalhos, magnólias e plátanos. Havia nele roseirais, jardins de buxo e pomares. E ruas muito compridas, entre muros de camélias talhadas». Tantas flores: gladíolos, begónias, orquídeas, camélias, túlipas, rosas, cravos e nardos. As flores têm nomes tão engraçados, e cada uma tem a sua própria personalidade. De noite, tudo ganhava vida e houve uma festa muito bonita. E entre todas as flores de mil cores, Florinda, a menina da história, tornou-se amiga inseparável do rapaz de bronze… Sophia em pequena também gostava muito de ouvir ler histórias e poemas, e mesmo antes de saber ler e escrever queria escrever: “quando comecei a escrever (disse um dia a própria Sophia) eu não sabia escrever. Eu tinha uma pena enorme. Eu pedi à minha mãe papel e caneta. Escrevia uns desenhos de umas letras inventadas por mim”. A imaginação era uma boa companheira e criava muitas personagens e aventuras. “Gostava de ler histórias diferentes, desde a Nau Catrineta até ao Gato das Botas. Também me maravilhavam os contos tirados das Mil e Uma Noites, Aladino e a Lâmpada Maravilhosa ou Ali-Babá e os 40 Ladrões”. E Sophia lembrava-se bem de ouvir recitar: «Lá vem a Nau Catrineta / Que tem muito que contar! / Ouvide agora, senhores, / Uma história de pasmar». E a Teresa lembrou-se logo do capitão general de dragonas, ao leme, e dos marinheiros sentados à mesa a comer e a conversar, debaixo das velas imponentes, que estavam na capa de um livro do avô.
UMA FAMÍLIA ANTIGA E UMA PRAIA.
Sophia era de uma família de raízes muito antigas. Havia comerciantes vindos de muito longe, do reino da Dinamarca. E entre os antepassados portugueses havia quem se tivesse celebrizado pela defesa da liberdade. Durante as longas férias de Verão a família ia para a Praia da Granja, e aí Sophia passou a viver enfeitiçada pelo Mar e pelos seus mistérios. E a Teresa lembrou a janela da casa da Ericeira com o oceano em frente e essa magia fantástica das ondas e da faina dos pescadores. Mas continuemos: foi a pensar na Granja e no Mar que a mãe de Sophia lhe contou “a história de uma menina muito pequenina que vivia nos rochedos da praia”. Era “A Menina do Mar”. E a história fala-nos de um rapaz e dessa menina que dançava no seu palácio submarino. “Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos-marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores”. A menina propõe-se visitar a terra de que o rapaz lhe fala, mas a Grande Raia leva-a para longe, para que a menina do mar não se deixe prender pelos encantos terrestres. O tempo passa e vem a saudade. E a Teresa apressada explica-me que já sabe o que é a saudade – é quando alguém de quem gostamos está longe. E a menina do mar mandou através de uma gaivota… Teresa volta a interromper: “avô – gaivotas em terra, tempestade no mar”. É verdade, mas a menina mandou através de uma gaivota um suco de plantas mágicas (uma espécie de poção mágica), que o rapaz deveria beber para poder nadar durante sessenta dias e sessenta noites, com um golfinho, até chegar ao lugar longínquo onde estava a menina. O rapaz tomou a poção, fez-se ao caminho e reencontrou assim a menina do mar, que voltou a estar alegre e a dançar. E por lá ficaram. “Agora a tua terra é o Mar – disse a Menina do Mar”. E ficaram a saber que a saudade é “a tristeza que fica em nós quando as coisas de que gostamos se vão embora”. Sophia nunca esqueceu esta história e contou-a vezes sem conta aos seus cinco filhos e a muitas gerações de jovens leitores. Quando cresceu, veio do Porto para Lisboa para estudar línguas e culturas clássicas, o grego e o latim. Entretanto, publicou o seu primeiro livro, que intitulou “Poesia”. A poesia e os contos para crianças ocuparam-na a partir de então. A memória é uma das suas fontes inesgotáveis de inspiração. “Aliás, nas minhas histórias para crianças (disse Sophia) quase tudo é escrito a partir dos lugares da minha infância”. Por outro lado, na escrita e na vida “procurava sempre combater a injustiça e a maldade de que alguns seres humanos infelizmente são capazes”. E Teresa comenta: o Natal existe para combater isso mesmo.
UM APELO A NÃO ESQUECER.
A história da fada Oriana é exemplo dessa preocupação. Os olhos muito abertos de Teresa ouvem essa parte da história com especial atenção. “Oriana é uma fada boa e muito bonita que promete proteger todas as criaturas da floresta”. A promessa solene foi feita à Rainha das Fadas. Na floresta havia uma senhora muito velha, um poeta e as famílias pobres de um lenhador e um moleiro. Mas, se primeiro Oriana não se esqueceu da ajudar essas pessoas, a verdade é que um belo dia, depois de ter salvo um pequeno peixe do rio, deixou-se enfeitiçar pela sua imagem projectada nas águas, como se estas fossem um espelho, e pelos elogios do peixinho. A vaidade fê-la rapidamente esquecer as suas obrigações. E a Rainha das Fadas retirou-lhe os poderes – “só tornarás a ter asas quando te esqueceres de ti a pensar nos outros”. Oriana arrependeu-se, quis voltar a visitar os habitantes da floresta, mas em vão, uma vez que eles tinham partido, deixando tudo ao abandono. Depois de resistir à Rainha das Fadas Más, Oriana sente-se desamparada, mas, já desanimada, reencontra a senhora muito velha, quase cega, a caminhar junto a um abismo. A queda é inevitável. Oriana precipita-se para salvar a velha, e esquece-se de que já não tem asas. Ambas caem no precipício, mas a Rainha das Fadas intervém e dá os poderes perdidos a Oriana que assim se salva, bem como a pobre senhora. Afinal: “só quando nos esquecemos de nós podemos ser realmente felizes e espalhar à nossa volta essa felicidade”. Em cada história há um apelo para que não esqueçamos os outros e para que não nos deixemos tomar pela vaidade. Teresa comenta: quando fazemos o presépio procuramos pôr lá todos, pastores, carpinteiros, caçadores, Reis Magos, para que ninguém se esqueça dos outros… No conto “A Floresta” fala-se de um tesouro e de que o dinheiro pode ser um veneno, porque nos torna escravos dele, esquecendo-nos de quem precisa da nossa ajuda. “Ela admirava a figura de Jesus Cristo e acreditava nos valores que ele nos transmitiu quando nos ensinou a amar os seres humanos com toda a força do nosso coração”… O conto “O Cavaleiro da Dinamarca”, sobre um homem que decidiu passar o Natal na Terra Santa no lugar onde Cristo nasceu. Teve de fazer uma viagem muito longa. E na gruta de Belém pediu a Deus que dele fizesse um homem capaz de amar os outros. No regresso, foi apanhado por uma tempestade e visitou os lugares mais maravilhosos de Itália… Daí foi até à Flandres e regressou à Dinamarca, entre muitos perigos, tendo-se salvo dos animais ferozes. Julgando-se perdido, na véspera de Natal, viu uma luz no horizonte – “era a claridade de um grande abeto que os anjos do Natal tinham iluminado com muitas estrelas”… Sophia gostava muito do Mar, já se disse. Depois da Granja, tornou-se fiel do Algarve, num tempo em que as praias tinham pouca gente e que a natureza não tinha sido destruída pela especulação. Infelizmente, esses lugares mágicos tornaram-se raros. E Sophia não gostava da desordem, e muito menos da mentira, da injustiça e da falta de liberdade. “O que lhe dava mais prazer (e sei-o por experiência própria) era a alegria que brilhava nos olhos das crianças quando abriam os seus livros e se encantavam com a magia das suas palavras”. E quando cheguei ao fim dessa descrição maravilhosa da vida de alguém que deu tudo de si à poesia, era o espírito de Natal que estava bem presente. A Teresa já estava quase a fechar os olhos… Mas ainda pôde acrescentar: “temos de contar esta história ao Pedro, ao João e ao Guilherme, para que não fique só para nós”… O Pedro e o João são os irmãos mais pequenos e o Guilherme é o primo. Mas este ano ainda há um presépio vivo, porque a irmã Isabelinha acabou de nascer, mas temos de dar algum tempo até que ela possa conhecer a Menina do Mar e a Fada Oriana… Para já sentirá a história de Gaspar, Melchior e Baltasar, os reis que deixaram as suas riquezas e partiram para junto do menino Jesus, guiados pelo brilho de uma estrela.
Guilherme d’Oliveira Martins