UM ENCONTRO OPORTUNO
O encontro em Moreira da Maia, de fevereiro de 1890, entre Antero de Quental e Oliveira Martins, em casa de Luís de Magalhães, tem a ver com um dos acontecimentos mais dramáticos da história portuguesa no final do século XIX – o ultimato inglês, sobre a questão do “Mapa Cor-de-Rosa”. Antero presidia à Liga Patriótica do Norte, criada para responder à humilhação de que Portugal foi vítima por parte do Governo britânico, ao ser compelido a abandonar a pretensão ao território entre Angola e Moçambique. O ultimato foi recebido a 11 de janeiro de 1890, sob a forma de telegrama, e suscitou uma imediata onda de protesto, perante uma atitude que contrariava o que o governo português vinha sustentando (desde 1886) na sequência da Conferência de Berlim de 1884-85, sobre a tese da ocupação efetiva de um território. Logo a 10 de fevereiro, constituída a Liga, presidida por Antero de Quental, esta enviara ao Presidente do Governo António de Serpa Pimental uma carta, em que era solicitada uma reação enérgica à provocação britânica. “Há horas solenes, em que a máxima, e ainda a mais brutal franqueza, é um dever de bom cidadão. Uma dessas horas é esta, e nós cumprimos um sagrado dever expondo sem véus à consideração de V. Exª todos os perigos que há em se demorar por mais tempo o exemplar castigo daquele criminoso”. A linguagem era dura e quem assinava a declaração tinha autoridade moral, política e intelectual para a fazer. Sob a presidência prestigiada do poeta de Sonetos, a Liga reunia, entre outros: Rodrigues de Freitas, António Vieira de Castro, Bento Carqueja, José Pereira de Sampaio (Bruno), Basílio Teles, Luís de Magalhães, António Oliveira Monteiro, Ricardo Jorge, conde de Resende, António Nicolau de Almeida, João Pais Pinto (abade de S. Nicolau), Maximiano Lemos e Joaquim de Vasconcelos.
UM GRITO DE REVOLTA
O movimento avançou, como um grito de revolta partilhado pela opinião pública, mas Antero quis saber o que pensava o seu fraternal amigo Oliveira Martins sobre o tema. “Precisamos muito de conversar. Por cartas nada se faz e agora nem tempo tenho para correspondências. Não poderíamos encontrar-nos ‘casualmente’ nalgum sítio, por exemplo em Aveiro em visita ao Jaime (Magalhães de Lima) ou coisa assim? Parece-me indispensável que combinemos um plano geral de modo que nunca tenhamos de trabalhar um contra o outro, só por falta de prévia entente. Você dirá, como e quando, quer que isto se realize. Sou bem infeliz e todavia sinto não sei que íntima e serena alegria. Dei-me todo a isto, mas em que disposição de espírito, bem o pode você conjeturar. Não havia outro homem e desde que me provaram que eu era o único possível entendi que não podia recusar-me”. O momento era dramático. Jaime Magalhães de Lima fora convidado por Antero para seu braço direito na Liga. Não houve delongas, o encontro era mesmo urgente. Não seria Aveiro, mas na Maia o lugar do encontro. Luís de Magalhães, o hospedeiro, deu testemunho: “Essa entrevista entre ele (Antero) e o seu tio (Oliveira Martins) (o esclarecimento foi dado, anos mais tarde, a meu Avô) teve com efeito lugar, mas foi aqui mesmo, em Moreira, onde este veio de propósito de propósito para esse fim. Seu tio vinha na ideia de que nós preparávamos uma revolução e tínhamos meios militares importantes (!!). A verdade é que não tínhamos nada, além do prestígio do nome de Antero, do entusiasmo da rapaziada e do sonho de meia dúzia de patriotas sinceros que acreditavam no efeito salutar da reação manifestada”. O que se terá passado? O encontro foi profícuo e os amigos concluem que o que os une é o mais forte. E os acontecimentos que se seguiram dão-nos a chave para o misterioso encontro. Houve eleições em março de 1890, e a lista republicana em Lisboa (Elias Garcia, Latino Coelho e Manuel de Arriaga) obteve um bom resultado. Mas logo em julho de 1890 já o afã da Liga esfriara. “A liga morreu afinal de pura inanição porque ninguém no fundo queria saber nem das colónias, nem de desforra, nem de reformas sociais (diz Antero). O que se passou durante este inverno é a prova mais cabal do estado de prostração do espírito público entre nós. Berrou-se muito e, afinal, chegaram as eleições, e toda a gente, movido cada qual por mesquinhos interesses, votou nos candidatos do governo, governo apoiado pela Inglaterra e que, nessa ocasião estava lançando a polícia sobre os que faziam manifestações patrióticas”. Onde o poeta sonhara poder levar a cabo uma ação doutrinadora orientada para a reforma do país, instalou-se, afinal, a inércia que tudo tocava. A 22 de agosto de 1890, é assinado um tratado com a Inglaterra, negativo para a nossa posição. Serpa Pimentel apresenta a solução em nome do governo – era Hintze Ribeiro ministro dos Estrangeiros e Barjona de Freiras, o negociador em Londres.
UM GOVERNO PARA EVITAR UM GOLPE MILITAR
O protesto mais intenso parecia atenuado nas ruas. Mas Oliveira Martins e os seus amigos continuam a criticar severamente a solução. Era inaceitável para a posição portuguesa. Entretanto, avolumava-se o boato sobre um golpe militar. Os republicanos preparavam-se afanosamente, e a proclamação da República brasileira (novembro de 1889) dava-lhes alento. Oliveira Martins há muito que considerava errada a política que conduzira ao malfadado ultimato, e continuava a pensar o mesmo quanto ao acordo de agosto. E aqui está a chave do entendimento de Moreira da Maia. O historiador dissera a Antero que a radicalização para que alguns queriam conduzir a Liga só agravaria as coisas – e Antero compreendeu-o bem. Por isso, apesar de tudo, o tempo dar-lhes-ia razão. A 15 de setembro, a Câmara dos Deputados não aprova o acordo. Em outubro, é convidado o General João Crisóstomo de Abreu e Sousa para formar um gabinete não partidário. Depois de hesitar, vai buscar dois amigos de Oliveira Martins – António Cândido e António Enes, para as pastas do Reino e da Marinha e Ultramar e Barbosa du Bocage para os Estrangeiros. Enes terá um papel fundamental, ele que afirmara: “A Inglaterra quando Portugal era representado pelo governo progressista, tratou-nos como um inimigo, movendo esquadras e carregando canhões para lhe vencer a resistência; quando viu o Sr. Hintze Ribeiro a representá-lo, tratou-o como um servo, querendo sujeitá-lo ao seu consentimento, para dispor do que nos pertence! A 11 de janeiro foi violenta; a 20 de agosto desprezadora”. É António Enes quem encontrará a saída necessária, que reconhecia a liberdade de navegação no Zambeze e no Chire para Portugal e o compromisso britânico de não manipular a posição dos régulos… Em Londres, o embaixador de Portugal, o marquês de Soveral assina em novembro com Lorde Salisbury uma convenção que confirma tal entendimento… Apesar de todas estas diligências, o ultimato deixará uma ferida profunda, que contribuirá para os trágicos acontecimentos do fim do regime monárquico. Mas, como afirma o autor de Portugal Contemporâneo: “Se é verdade ser o povo quem faz os governos, não é menos verdade que a fraqueza dos príncipes e dos ministros entibia as energias dos povos”…
Guilherme d’Oliveira Martins
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