UM CULTO ESPECIAL IBÉRICO
O Império Romano do Ocidente deu lugar à Respublica Christiana, marcada por diversos caminhos de Peregrinação, considerando que “todos os caminhos vão dar a Roma”. Na Península Ibérica, a partir do século VIII, a ocupação islâmica determinou o movimento de Reconquista cristã, iniciado nas Astúrias e no sul de França, com a vitória de Poitiers (732). A importância da peregrinação de Santiago de Compostela relaciona-se com este movimento. Em finais do século VIII difunde-se no noroeste peninsular a lenda de que aí estaria o corpo de Santiago Maior. Cerca de 812 um eremita de nome Pelágio teria avistado uma estrela pousada no Bosque de Libredón. Tal facto foi comunicado ao Bispo de Iria Flávia, Teodomiro, que se deslocou ao local e identificou o lugar no qual se encontraria o corpo decapitado do apóstolo nos restos de uma antiga capela de um cemitério romano. A esta referência se associou a chegada à região de uma população moçárabe, que assim passou a ter condições para a práticar da religião cristã. A designação Compostela constituiria uma derivação do latim “Campus Stellae”, a evocar a descoberta revelada a Teodomiro. Nesse local haveria uma antiga festa pagã ligada ao culto do Sol em Finisterra. O tempo viria a tornar a festividade de Santiago Apóstolo de grande importância, a partir da forte ligação às tradições dos trovadores da Provença e do Languedoc, no sul de França, confirmando a ligação de todo o norte peninsular às raízes culturais comuns e às necessárias condições de segurança, perante a influência muçulmana. Em 1075, o Bispo Diego Páez iniciou a construção da Catedral românica dedicada a Santiago, graças aos recursos financeiros gerados pelo sucesso da presença de peregrinos europeus. Deste modo, Compostela ganhou evidente peso político no novo Reino de Leão. Em 1120, o arcebispo Diego Gelmirez obteve do Papa Calisto II a transferência da Sé Metropolitana de Mérida para a igreja compostelana, em detrimento do primaciado dos Arcebispos de Braga. E o Prelado de Santiago de Compostela ganhou jurisdição eclesiática sobre a maioria das dioceses das Astúrias e de Leão, além de possuir um rico domínio feudal até ao Atlântico. Em 1102, o poderoso arcebispo Gelmirez levou de Braga, pela calada da noite, num verdadeiro assalto, as relíquias do bispo bracarense S. Frutuoso e dos mártires S. Silvestre, S. Cucufate e Santa Susana. Tal atitude, algo comum no período medieval, teve como justificação a necessidade de dar às relíquias devida adoração em Santiago de Compostela. O episódio conhecido como “pio latrocínio” foi origem de um longo conflito entre Braga e Compostela, apenas reparado em 1966 e 1993, quando as relíquias regressaram a Braga.
Se há uma ligação evidente na cultura galaico-portuguesa a Santiago de Compostela, há consequências políticas deste último conflito, com peso indiscutível nas reivindicações independentistas dos barões de Entre Douro e Minho, ciosos das prerrogativas de Braga e do Porto. Se as tentativas de Diego Gelmirez de criação de uma teocracia, que ameaçava também o Reino de Leão, não tiveram sucesso, a verdade é que viria a ser o futuro Reino de Portugal beneficiário da autonomia cultural e linguística do polo de Compostela, pela adoção por D. Dinis do galaico-português como língua oficial. O desenvolvimento cultural suscitado pela influência trovadoresca e pela ligação europeia de galaico-portugueses e provençais, ao longo do Caminho de Santiago, viria a reforçar a autonomia estratégica do ocidente marítimo peninsular, autêntico herdeiro da tradição jacobeia. A relação galaico-portuguesa permitiu a aproximação ibérica de que falava Miguel de Unamuno, compreendendo a diversidade histórica e considerando que há caminhos diferentes que visam um património comum, cultural e linguístico, além de se inserir num mundo complexo das culturas múltiplas geradas nesta língua comum de peregrinos e trovadores. Lembramos Martim Codax, Afonso X, o Sábio, Meendinho (da ermida de S. Simão da ria de Vigo), mas também Rosalia de Castro, Curros Enriquez, Eduardo Pondal ou o Padre Feijó – e deste modo encontramos raízes antigas que nos projetam no futuro. E a língua portuguesa conduz-nos a várias culturas que se desenvolvem e enriquecem mutuamente. No tempo em que o multilinguísmo está na ordem do dia e deve ser desenvolvido, a afirmação da língua e das literaturas provindas do galaico-português exige mais conhecimento mútuo e vontade comum. E quando Fernando Pessoa fala da pátria como língua, o que reclama é o dever de comunicação e a responsabilidade de uma “memória criadora”.
AS REDES EUROPEIAS DE CAMINHOS
Falar do Caminho de Peregrinação de Santiago é considerar também a tradição do galaico-português, e lembrar as origens da língua em que nos exprimimos, e recordar uma história cultural que nos leva a raízes muito antigas na Europa, desde a reconquista até à modernidade, o que nos conduz a um diálogo com os povos peninsulares, desde o império romano aos berberes e árabes até à cultura moçárabe, passando pelo cadinho que nos caracteriza. E é extraordinário ver como a língua do ocidente peninsular se tornou universal. As raízes históricas dos caminhos de peregrinação (“per agros”) superaram em muito as tradições antigas – as origens religiosas, reforçaram-se pelas práticas culturais e hoje o conceito moderno de património cultural conduz-nos à importância crescente dos roteiros além-fronteiras e às redes de cooperação cultural, educativa, científica, ambiental e turística. O caso das Peregrinações de Santiago liga-se a uma rede muito diversificada que se desenvolveu na Europa, e hoje se projeta mundialmente, o que constitui decisivo fator de uma Cultura de Paz, que tem sido defendida na UNESCO, mas também no Conselho da Europa, segundo o espírito da Carta das Nações Unidas e os objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O Ano Santo Jacobeu ocorre sempre que o respetivo dia 25 de julho corresponder a um Domingo, o que acontece em 2021. Contudo, em virtude da Pandemia Covid-19, o Papa Francisco autorizou que as festividades se prologuem em 2022.
Guilherme d’Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões – Ensaio Geral, Rádio Renascença