A VIDA DOS LIVROS
de 7 a 13 de Dezembro de 2009
“Representação Política – Textos Clássicos”, coordenação de Diogo Pires Aurélio (Livros Horizonte, 2009) é uma obra integrada na colecção “Estudos Políticos”, dirigida por Pedro Tavares de Almeida, que reúne diversos ensaios sobre a representação popular da autoria de alguns dos mais importantes teóricos sobre a concepção e a aplicação do princípio da legitimidade pelo consentimento – Edmund Burke, Emmanuel Sieyes, Gyorgy Lukács, Hans Kelsen e Carl Schmitt. A obra é antecedida de um estudo introdutório da autoria do organizador da colectânea, onde este reflecte circunstanciadamente sobre “o que representam os representantes do povo”.
House of Commons, Pugin and Rowlandson, in “Microcosm of London” (1808-11)
QUE É A REPRESENTAÇÃO?
Em lugar de escolher reflexões estereotipadas sobre a representação, Diogo Pires Aurélio preferiu optar por textos menos conhecidos capazes de levar os leitores ao âmago do tema da representação, com as suas virtualidades e limitações. “Os problemas que a representação suscita residem precisamente (diz-nos D.P.A.) na dificuldade de a inserir no quadro geral da racionalidade em que pensamos a política e que assenta no pressuposto da autonomia individual, ou seja, no direito inalienável do indivíduo a ser legislador de si próprio”. Mas o que é a representação? Como pode esta concretizar a democracia e assegurar a efectividade de relações sociais fundamentadas no pressuposto do consentimento, através do qual a liberdade e a igualdade se articulariam? Etimologicamente, re-presentar é trazer à presença algo que está ausente ou invisível. Temos, assim, a dualidade do representado e do representante. E, mais do que isso, há um espaço público no qual se exprime uma pretensão ou uma vontade. Pode ou não haver um destinatário (como acontecia nas Cortes Gerais da Nação), pode haver a dupla condição de súbdito e de soberano (no sistema de assembleia de Rousseau, segundo o qual a vontade geral não se “representa”) ou pode entender-se que (na expressão de Montesquieu) o povo faça através dos seus representantes o que não pode fazer por si mesmo? Mas se falamos de representantes, a verdade é que estes deixaram de ter poderes consultivos como no “Ancien régime”, passando a ter funções deliberativas e ganhando, assim, liberdade de acção, incompatível com o mandato imperativo. E lembramo-nos de Hobbes, quando este afirma: “aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que constituíam a assembleia declarou com esse acto a sua vontade (e portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir”. O próprio Locke, na lógica da defesa dos direitos individuais aponta no mesmo sentido. No entanto, esta ideia sofre um aperfeiçoamento aquando da revolução americana. Enquanto na América (fruto da distância) prevalece a ideia de que o representante faz parte de uma comunidade de origem, na Grã-Bretanha há uma responsabilidade institucional, face à Constituição material e ao povo, e Edmund Burke (1729-1797) é especialmente enfático na defesa desta legitimidade histórica. De facto, na sequência da gloriosa revolução (1688-89), bastaria a vontade de independência face aos nobres e ao rei, assegurada pelos Comuns.
COMO CONCEBER A REPRESENTAÇÃO?
Por contraponto à posição de Burke, Emmanuel Sieyes (1748-1836), discípulo de Roussseau, considera a soberania como uma questão de vontade e, para esta se formar, torna-se necessário evitar que o interesse público seja prejudicado pelo protelamento das decisões – “a comunidade resolve-se a atribuir mais confiança aos seus mandatários”. Há, assim, um direito de querer – e a vontade comum (poder constituinte) só pode manifestar-se concretamente afirmando-se como poder constituído. Sieyes procura resolver um problema deixado omisso por Rousseau: quem tem legitimidade para deliberar em nome do povo? E responde: é preciso que haja representantes extraordinários, que exerçam o poder legislativo, diferentes dos representantes ordinários a quem cabem as funções executivas. E a vontade dos primeiros valerá como a da própria nação. Falta, porém, solucionar o paradoxo entre a soberania e a liberdade individual. Nem o mérito e a confiança podem, por si sós, dar solução à contradição. Como impedir as manipulações e os constrangimentos limitadores de um exercício efectivo do poder pelo povo? E Proudhon perguntará: “onde e quando é que ouviram o povo?”. Afinal, a representação poderia não tornar mais livre um povo. E a revolução industrial agudizou o problema, dadas as diferenças em relação à lógica burguesa, de que a “primavera dos povos” (1848) foi momento supremo. Daí o húngaro Lukács (1885-1971) exprimir as suas dúvidas (num texto de 1920): “a ficção da democracia burguesa-parlamentar assenta justamente em o parlamento não aparecer como um órgão da opressão de classe mas sim como ‘orgão de todo o povo’. Na medida em que todo o radicalismo verbal – pelo facto da sua possibilidade parlamentar – reforça as ilusões das camadas adormecidas do proletariado em relação a esta ficção, é oportunista e de rejeitar”. Na linha de Lenine, deveria ser recusada a lógica da representação parlamentar. E é perante as críticas feitas à direita e à esquerda em relação ao parlamentarismo representativo, que Hans Kelsen (1881-1973), num texto de 1925, defende a actualidade e a necessidade das assembleias. É certo que a vontade do Estado, formada no parlamento pode não ser a vontade do povo, no entanto seria necessário superar a “ficção da representação” através da ideia de compromisso, entre a ideia de liberdade política e o princípio diferenciador da divisão do trabalho, condição de todo o progresso da técnica social. Tornar-se-ia necessário temperar o parlamentarismo com a iniciativa popular, ligar o princípio da maioria e a protecção da minoria ou consagrar a proporcionalidade e democratizar os partidos… Carl Schmitt (1888-1985) opor-se-á ao pensamento de Kelsen, afirmando haver uma contradição entre democracia e parlamentarismo. “A moderna democracia de massas procura realizar uma identidade entre governantes e governados, e depara-se nesse caminho com o parlamento enquanto instituição que passou a ser incompreensível, decrépita”. A representação obrigaria, assim, a assumir um princípio unificador, daí o regresso ao mandato imperativo e a necessidade de compreender o parlamento como personificação do povo – “complexio oppositorum da multiplicidade dos interesses e dos partidos”. Fiel à intuição hobbesiana, Schmitt considera que o povo necessita de uma representação pessoal, que dê existência concreta e pública à unidade política. Daí as referências à identidade e à representação. Na identidade há o reconhecimento da unidade política diferenciada das outras unidades amigas ou inimigas. No entanto, um máximo de identidade corresponderia a um mínimo de governo. Ao invés, o princípio da representação tenderia a reduzir o espaço dos cidadãos e a dar mais poder aos governos. Chegar-se-ia a uma res populi sem populus. Para Schmitt a representação seria, pois, um elemento não democrático da democracia representativa. Esta reflexão conduz-nos ao tema dos partidos políticos e do Estado de partidos, que correspondem hoje a algo de diferente do que ocorria no liberalismo oitocentista. Apesar de tudo, como considera Leibholz, os partidos são “os únicos órgãos capazes de organizar o povo politicamente e de o tornar capaz de agir”. Estamos, no entanto, perante o tema crucial da vida política contemporânea. Será que o Estado de partidos (que contraria o totalitarismo pela sua lógica pluralista) se torna um Estado de comunicação, ligado à influência crescente dos meios de comunicação social, e à avaliação permanente da legitimidade do exercício? Ou será que os partidos políticos podem alterar a sua natureza e o poder representativo perante a força da comunicação (veja-se o fenómeno italiano)? Teria razão Maurice Duverger quando dizia que a opinião pública é a projecção do sistema partidário? O tema está na ordem do dia. A identificação entre representantes e representados é impossível. Os representantes tendem a limitar a liberdade, os representados a alargá-la. “Identificar uns e outros (diz-nos D.P.A.) tem um destino previsível ou o despotismo ou a anarquia”. Resta o compromisso.
Guilherme d’Oliveira Martins
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