UM AUTOR POUCO LEMBRADO
Lembramo-nos do que Eça de
Queiroz disse quando soube da morte de Júlio Dinis: “Tréguas por um
instante nesta áspera fuzilaria! Numa página à parte, tranquila e meiga,
pomos a lembrança de Júlio Dinis. Que as pessoas delicadas se recolham
um momento, pensem nele, na sua obra gentil e fácil, que deu tanto
encanto, e que merece algum amor. (…) Júlio Dinis viveu de leve,
escreveu de leve, morreu de leve” (As Farpas, setembro de
1871). É um comentário que pressupõe distância, que compreendemos por
parte de quem pugnava por uma renovação profunda da literatura e do
pensamento, colocando o autor de Uma Família Inglesa no lado
romântico da geração que o antecedera. Trata-se de uma apreciação
comprometida, e o certo é que o comentário persistiu ao longo do tempo,
numa situação agravada pelo facto de Júlio Dinis ser um dos nossos
melhores escritores, infelizmente mal compreendido porque pouco lido. E
assim fica por parte de Eça de Queiroz o reconhecimento de uma aura de
simpatia, apesar da relativização da obra. Contudo, estamos perante um
dos mais marcantes autores da sua geração, que bem conhecia os mais
importantes autores da língua inglesa do seu tempo, notando-se a
preocupação especial no tratamento dos temas dos seus romances,
obedecendo a um sentido cuidado de clareza, verdade e pedagogia, além da
escolha de um ritmo ponderado capaz de entender a diversidade da vida,
de procurar a autenticidade e a regulação dos conflitos, numa gradual
aproximação ao naturalismo. Jane Austen, Charles Dickens ou William
Thackeray eram bem conhecidos do romancista portuense, notando-se essa
influência, não numa perspetiva de escola, mas com uma preocupação de
compreender e representar a sociedade portuguesa.
AUTOR MAIOR DA NOSSA LITERATURA
Júlio
Dinis é um autor maior da nossa cultura, com identidade própria,
profundamente influenciado pela melhor literatura anglo-saxónica. O
certo é que não é possível conhecer a sociedade portuguesa do seu tempo
(e as origens da nossa) sem ler os seus romances, onde se nota, com
nitidez a coexistência da tradição antiga, patriarcal e conservadora, do
tempo anterior, com as manifestações e anseios de modernidade, de uma
nova época. É o Portugal profundo que se confronta com o mundo em
mudança. As personagens do romance português do século XIX coexistem e
coabitam. Dir-se-ia que as gerações se sucedem e se completam, entre
dramas e desencontros, entre anseios e sonhos – com Garrett, Júlio
Dinis, Camilo e Eça. Em bom rigor, se não seguirmos essa pequena
multidão pouco compreendemos. E quando se nos depara a rica panóplia de Portugal Contemporâneo, não
podemos esquecer que tudo está ilustrado nessa rica complementaridade
romanesca. No caso de Júlio Dinis, numa leitura superficial, pareceria
que são os fatores conservadores a prevalecer. É uma ilusão. Leia-se As Pupilas do Senhor Reitor, publicado em 1866, Uma Família Inglesa, retrato da vida citadina e da pequena burguesia nascente (1868), A Morgadinha dos Canaviais,
a melhor análise da vida política do constitucionalismo liberal. O que o
romancista já anuncia é o surgimento do realismo e do naturalismo,
sobretudo numa Europa em profunda mudança, como os jovens do Bom Senso e
do Bom Gosto cedo compreenderam. Atormentado pela doença, luta contra o
tempo, em 1869, parte para a Madeira, em busca de melhoras da doença,
reflete profundamente sobre o mundo que se transforma. Em 1870, no Porto
publica os Serões da Província e conclui Os Fidalgos da Casa Mourisca,
cujas provas tipográficas já não acaba de rever. E é talvez nesta ponta
final que poderemos encontrar uma curiosíssima síntese capaz de fazer
compreender a sociedade em que o escritor vivia e que anunciava
culturalmente significativas mudanças. A leitura da obra romanesca de
Júlio Dinis permite-nos lidar com uma literatura que acompanha a
evolução de uma sociedade que se vai emancipando progressivamente pelo
exercício da liberdade.
ENTENDER PAÌS PROFUNDO
Se entendemos o país profundo na complexa trama de A Morgadinha dos Canaviais, em
especial na tensão extraordinária entre o Conselheiro Manuel Bernardo
Mesquita e Joãozinho das Perdizes e no panorama do enredo, não podemos
compreender o liberalismo constitucional português sem ler o romance e
sem compreender as suas personagens. Mas, como assinalou com extrema
pertinência, Helena Carvalhão Buescu em “A Casa e a Encenação do Mundo:
‘Os Fidalgos da Casa Mourisca’ de Júlio Dinis” (“Veredas – Revista da
Associação Portuguesa de Lusitanistas”, 1, Porto, 1988) o romancista na
sua derradeira obra usa a metáfora da “Casa Mourisca” para representar
Portugal, enquanto realidade histórica e política. No início, o velho
País, como a casa do título, surge majestoso e severo, dominado pela
questão do tempo e pela heterogeneidade da sua construção. À imponência
de um passado visto como glorioso mas perdido, segue-se a decadência
material do presente, projetando-se a recuperação do futuro. “Os tempos e
os países, reflete Júlio Dinis, não se fazem já da predominância de
velhos senhores agarrados à tradição enclausurante do passado, mas do
estabelecimento de mediações e contratos (sociais, evidentemente, que
Rousseau não é já desconhecido) que ao mesmo tempo preservem (trata-se
de uma solução reformista) e alterem o tecido social no sentido da sua
heterogeneidade e cooperação interativa” (H. Buescu). Deste modo,
aproximamo-nos da reflexão de Gonçalo em A Ilustre Casa de Ramires–
e, nas duas situações, as Casas são as matrizes sociais. Portugal, isto
é, a Casa Mourisca (como na Torre de Ramires) não se constrói pela
eliminação de contrários, mas pela criação de condições para a
convivência, através do contrato social. A guerra civil nacional
reproduz-se em miniatura na Casa Mourisca, no confronto dramático entre
D. Luís Negrão de Vilar de Corvos e o cunhado, ou no diálogo entre Frei
Januário e o liberal hortelão ex-companheiro do cunhado morto. A verdade
é que a guerra civil terminara há mais de trinta anos, mas importava
entender esse tempo como passado. Maurício, Jorge e Berta da Póvoa
representam um novo tempo e uma nova vontade. A filha de Tomé da Póvoa,
antigo caseiro de D. Luís, representa, assim, como a sociedade se
transformava decisivamente. “Desenganemo-nos; a época não é de
privilégios nem de isenções nobiliárias; é de trabalho e de atividade.
Plebeu é hoje só o ocioso, nobre é todo o que se torna útil pelo
trabalho honrado”. Um escritor é a sua época e projeta-se para além
dela, usando a literatura como modo de melhor compreender os
acontecimentos e as pessoas. Eis a atualidade permanente da melhor
literatura. Júlio Dinis faz parte dela.
Guilherme d’Oliveira Martins
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