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A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD

São aqui publicadas semanalmente as crónicas de João Bénard da Costa no jornal “Público”. Esta semana: “Retratos Premonitórios”

RETRATOS PREMONITÓRIOS


por João Bénard da Costa


1. Regressado da Arrábida (ando agora muito cronológico), o meu primeiro acto “oficial” foi receber Hanna Schygulla, a actriz de Fassbinder, convidada pelo Festival Temps d’Image para um espectáculo no CCB, onde de resto não fui, salpicado por alguns filmes dela exibidos na Cinemateca. Passou de raspão (“Storia di Piera”) e vi-a de raspão, porque Deus põe e o homem dispõe, ao contrário do que por aí se diz. Mas, à roda de um copo, a propósito já não sei bem de quê (é mentira, lembro-me muito bem), citou ela alguém que se espantava com o humano pudor que leva a ocultar o sexo mas a exibir a cara, “a coisa mais nua que todos temos”. A frase valeu o encontro, porque nunca me tinha posto o problema em tais termos. É certo que nem todas as culturas tratam o rosto com despudor, mas as que o ocultam são literalmente mal vistas. Ou é sinal de repressões intoleráveis (as mulheres nos países islâmicos, as “burqas”, para não vir mais perto e recordar os véus das viúvas que ainda são do meu tempo) ou de disfarce intolerável. “Embuçado nota bem / que hoje não fica aqui ninguém / embuçado nesta sala”, para ser tão trivial quanto possível.
Mas é bem certo que quem vê sexos não vê corações e quem vê caras os vê, já que hoje me deu para contrariar lugares-comuns. Só os não vê quem não quer ou não sabe ver e quase todos somos razoavelmente cegos. Lembro-me da pergunta de Sophia quando alguém se lhe queixava de ter sido bem enganado por fulano ou sicrana. “Mas nunca lhe viu a cara?” Regra geral não viram, que o diabo é sempre tão feio como o pintam, pelo menos a partir da idade em que cada um tem a cara que merece e não aquela com que nasceu. Tão nua como a cara, só a voz. É verdade que tudo num corpo é revelação e que dos pés à cabeça (com especial importância para as mãos) pode-se desvelar muita coisa. Já conheci especialistas de tudo, até de umbigos e de tornozelos, e não me custa a admitir que haja sexos intoleráveis, mas Hanna Schygulla tem razão. Nua nua só a cara e nudíssimos nudíssimos só os olhos e a boca. Isso a que se chama expressão e que é sempre o que faz a maior impressão.


2. Há uns tempos, referi-me, numa destas crónicas, a um retrato de Tiziano, actualmente em Filadélfia, que me foi revelado por Jean Louis Schefer. Representa o arcebispo Filippo Archinto, e mostra-o com o rosto semicoberto por um véu. Na altura, pensei que o prelado tivesse um defeito qualquer que essa forma de representação ocultaria. Muito mais sabido em coisas de iconografia do que eu, Schefer desenganou-me. Tiziano queria apenas significar que o arcebispo já tinha morrido quando ele o pintou, já que os mortos, se mantêm por algum tempo isso a que se chama expressão (e que nunca ninguém conseguiu explicar convincentemente o que seja), perdem-na rapidamente (por isso mesmo, tão pouco tempo são expostos). Cobrindo parcialmente a eminência, Tiziano deu-nos a ver “la mort au travail”, o que acontece aliás com qualquer retrato, suspensor do tempo e não seu veículo.
Curiosamente, é para isso mesmo que os retratos existem. Porque, desde as civilizações das múmias, se acreditou que o retrato prolonga a vida da pessoa retratada, que viveria enquanto essa sua imagem vivesse.
Num livro recente sobre os retratos na história de arte (uma luxuosa edição da Giunti) fala-se do “jus imaginum”, privilégio que na antiguidade só detinham as famílias da nobreza, que, de resto, o continuaram a ter, mesmo que não baseado em qualquer lei escrita, até aos fins do século XVIII e ao advento do “terceiro estado”. Só quando se inventou a fotografia, “toda a gente” passou a ser retratada e, mesmo assim, muito gradualmente, já que entre os meados do século XIX e os meados do século XX, só a burguesia se fazia retratar nos Institutos Photographicos ou no Amer da Rua do Ouro. Resta saber se a invenção da fotografia foi causa ou consequência, como se foi causa ou consequência dela que a pintura abandonasse a figuração. Conversas largas que para aqui, hoje, não são chamadas.


3. Mas esse livro dos retratos encontrou em mim campo fértil. Como citava, com alguma abundância, textos de Hawthorne e de Gogol sobre retratos mágicos ou sobre a magia dos retratos, passei parte das férias a ler tais textos, que são somente alguns dos muitos do demonismo romântico, bebido em Hoffmann e nos sonhos das almas românticas, culminando eventualmente no “Là-Bas” de Huysmans, esse livro a que Verlaine chamou “épastrouillant”, termo que não consigo traduzir, como não consigo traduzir Mallarmé quando ele fala de “cette vaine, perplexe, nous échappant, modernité”.
Mas ainda antes de voltar às imagens fixas, não resisto a contar-vos no que dão imagens movediças. Em “Là-Bas”, como eventualmente saberão alguns, a torre da igreja de Saint-Sulpice em Paris (que, aliás, Huysmans execrava) tem um papel importante, através da figura capital da mulher do sineiro e dos seus cozidos à francesa. Pois me sucedeu que o livro que a esse se seguiu, em leitura de Verão, foi “La Lutte avec l’Ange” de Jean Paul Kauffmann, que mão amiga me fez chegar, e onde tudo se passa na dita igreja, partindo do fresco célebre de Delacroix que tem o título do livro e que, até hoje, me foi única razão para visitar Saint-Sulpice. Páginas não eram lidas, descobri que a igreja está na moda, devido ao famigerado “Código Da Vinci”, que nisso, como em tudo, vigariza a propósito da famosa meridiana, que, parece, justifica hoje a entrada de multidões ululantes, em busca dos segredos da vida perversa de Jesus Cristo e Maria Madalena. Livro que até li, para poder argumentar com conhecimento de causa às dúvidas metafísicas de descendentes e ascendentes, que tomaram a sério as “revelações” do autor, nestes tempos de vale-tudo. Não será nos próximos meses que poderei decidir, em paz e sossego, quem viu melhor a igreja onde baptizaram Sade: se Huysmans, na sua embirração, se Kauffmann nos seus ditirambos. Mas se quiserem saber de mim, neste Verão, procurem-me entre eles, Hawthorne e Gogol. E, obviamente, nos retratos.


4. A eles volto. Em Hawthorne (que não conhecia Gogol, mas certamente conhecia o Hoffmann de “Doge e Dogoressa”, ou Tieck, ou Chamisso ou Goethe) no fabuloso conto “Prophetic Pictures”, que já croniquei por aqui, o retrato não funciona como prova do génio de um artista mas como sinal da maligna fatalidade de um “guilty medium”. A pintura é um símbolo poético no duplo retrato do pacífico casal Walter e Elinor Ludlow, retrato que se transforma com o tempo, dando a ver ocultos terrores e subterrâneas ferocidades, onde inicialmente só se viam plácidas belezas e jovens nubentes.
Walter, bem avisado fora pelas velhas senhoras de Boston que os retratos do pintor podiam ser proféticos, e que este, depois de tomar posse de um rosto e de um corpo humanos, os podia pintar em qualquer situação futura. Mas Elinor tranquilizou-o: “Mesmo que ele tenha tais magias, há qualquer coisa tão doce nos seus modos que tenho a certeza que as usa bem.” Mas foi o pintor quem viu a nudez toda da cara deles e não Elinor, que a viu coberta por uma ilusória doçura. Nas posteriores visitas ao quadro, ambos notam que este, sendo o mesmo, era já outro. Elinor olhava o noivo com ânsia e terror. “Is this like Elinor?” “Compare a cara dela com a cara que eu pintei.” E, só nesse momento, Walter reparou que a expressão de Elinor era exactamente a expressão do quadro e que, se este fosse um espelho, não teria captado melhor olhar de tanto pavor. Elinor, absorta, nem ouve o diálogo entre o pintor e o marido. Mas, quando acorda do torpor, volta-se para Walter e pergunta-lhe por sua vez se ele não se acha mudado. “That look! How come it there?”
Depois, o quadro muda todos os dias, até à última visão, quando Walter esfaqueia a mulher e o “retrato, com as suas tremendas cores, finalmente ficou terminado”.
“Não haverá uma profunda moral neste conto?”, termina Hawthorne, bem à sua maneira, tão inquietante quanto distanciada. “Quando vimos o resultado de uma, ou de todas as nossas acções, surgir diante de nós, alguns chamar-lhe-ão Destino e fugirão apavorados, outros mergulharão ainda mais em desejos ocultos. Mas ninguém poderá afastar-se dos RETRATOS PROFÉTICOS.” Em Gogol, a maldição é traduzida por um retrato que dá a todos os que o possuem, primeiro a maior glória e, depois, o desespero total. E o que torna o quadro reconhecível são “uns extraordinários olhos” e “uma estranha expressão”. Gogol invoca todos os grandes pintores do Renascimento que, à época do conto (1843, o mesmo ano da publicação de “Prophetic Pictures”) eram os mais valorizados pela crítica novecentista: Tiziano, Rafael, Guido Reni, Leonardo, Rubens, Van Dyck. Todos eram ultrapassados pelo pintor que possuía o quadro mágico e que pintava com verosimilhança e verdade jamais alcançadas. Mas esse “dom” era efémero e continha a própria maldição. Esta só é esconjurada na narração final. Quando o último proprietário se prepara para destruir o quadro, o quadro desaparece. E “todos ficaram ali, por largo tempo, sem saber se tinham visto realmente aqueles olhos extraordinários ou se se havia tratado de uma ilusão que por momentos lhes toldava a vista, fatigada por tão longo exame de quadros antigos”.
Em Gogol, existe porventura uma intenção moralizante (o tema do artista que vende a alma ao diabo, no fundo o tema do “Dorian Gray” de Wilde, que talvez encerre, em literatura, esta estranha genealogia, retomada, nos anos 40 do século XX, pelo cinema de Hollywood). Mas, em Hawthorne, a pintura é necromancia e a pessoa pintada transforma-se na criatura do pintor. Em ambos, o cerne é o perigo da nudez exposta ou o perigo do que essa nudez expõe ao pintor. Nenhum retrato existe. Só existe a visão do pintor. E deixo-vos a olhar, uma vez mais, “Lucrezia Panciatichi”, de Bronzino, minha tão incerta secretária de premonição. Já viram mulher mais vestida? Já viram mulher mais nua?


(22 de Outubro 2004, Público) 

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